Obras

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sexta-feira, 7 de dezembro de 2018


A VERDADE NUA
La vérité qui sort de ton puits*
Jean-Léon Gérôme
Óleo s/tela, France, 1896

O texto que trago hoje é uma parábola judaica de autoria desconhecida, do século 19. É um bom momento para se refletir sobre os artifícios de sedução da Mentira, em contraste com o estado puro da Verdade.


~•~
Conta-se que um dia, a Mentira e a Verdade se conheceram. A Mentira era uma mulher belíssima, sedutora, afável, de sorriso fácil e voz suave, pele alva e macia. A Verdade, por sua vez, também tinha um belo rosto, maduro, de traços mais rudes marcados pelo tempo, voz serena e firme e olhos negros profundos.
Nesse encontro, A Mentira disse à Verdade:
– Bom dia, dona Verdade, que dia lindo, que luz maravilhosa!
Desconfiada, ciosa de seu caráter, a Verdade foi conferir; olhou para o alto e viu que o Sol reinava absoluto num céu azul sem nuvens. e que vários pássaros cantavam numa algaravia sem fim. Tendo se assegurado de que era realmente um dia esplendoroso, respondeu à Mentira:
– Bom dia, senhora Mentira, tem razão, temos um belo dia a desfrutar!
– E está muito calor também, não acha?, indagou a Mentira.
E a Verdade concordou, vendo que a Mentira estava sendo sincera.
A Mentira, então, num gesto de amizade, convidou a Verdade a banharem-se no poço do jardim. Tirou a roupa, pulou na água e disse:
– Venha, dona Verdade, a água está uma delícia.
Sentindo-se convencida diante de um convite tão gentil, a Verdade despiu-se e entrou no poço, constatando que de fato a água estava limpa e refrescante. Pouco depois, a Mentira saiu e rapidamente vestiu-se com as roupas da Verdade, fugindo sorrateiramente. Surpresa e indignada, a Verdade tentou alcançá-la mas já era tarde, ela desaparecera na floresta. Recusando-se a usar as roupas da Mentira para não manchar a sua reputação, e como não tinha do que se envergonhar, decidiu andar desnuda pelas ruas.
Porém, ao depararem com a Verdade nua, as pessoas não a encararam, desviando olhar com raiva e desprezo. Enquanto isso, a Mentira, vestida como Verdade, desfilava cheia de graça, cortejada e seguida por toda a gente, a todos enfeitiçando com seus sortilégios. A Verdade, sentindo-se preterida e ignorada, voltou ao poço para esconder-se e de lá só sair só quando fosse preciso.
É mais fácil aceitar a Mentira com ares de Verdade do que encontrar a Verdade nua.
A Verdade sai do poço armada de seu chicote para punir a humanidade.

La Vérité sortant du puits armée de son martinet pour châtier l'humanité

2 comentários:

  1. Até de nós mesmos escondemos (ou maquiamos) algumas verdades que nos doem. É muito mais confortável lidar com mentirinhas indolores. Como sempre, adorei o texto.

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