Obras

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sexta-feira, 8 de fevereiro de 2019

CREDO QUIA ABSURDUM?
Parte 3

Freud segue analisando o universo religioso sob a ótica psicanalítica, sem descurar dos aspectos culturais, sociais e históricos. Cabe trazer um novo trecho do Prefácio para clarear algumas possíveis zonas de sombra:


Ao escrever sobre religião naquele momento específico da sua obra, Freud luta para estabelecer a psicanálise enquanto campo de saber que formula uma concepção de aparelho psíquico, que por sua vez fornece a base de uma nova terapêutica para o sofrimento mental humano. O sofrimento mental humano não é nem o produto de forças exteriores, como a religião faz acreditar, nem o produto de lesões corporais ou de heranças familiares, como a medicina fazia crer até então. É na história singular de cada homem, em conjunção com as forças pulsionais que habitam seu corpo e inscritas na constituição de seu psiquismo, que encontramos as razões para o sofrimento psíquico que se expressa através de seu corpo e de sua alma.


Agora é preciso mencionar duas tentativas que dão a impressão de um empenho obstinado em fugir ao problema. Uma delas, de natureza forçada, é antiga; a outra, sutil e moderna. A primeira é o credo quia absurdum do padre da Igreja*. Isso significa que as doutrinas religiosas escapam às reivindicações da razão, que estão acima dela. Deve-se perceber a sua verdade interiormente, não é preciso compreendê-las. Só que esse credo é interessante apenas como confissão; como imperativo, não possui qualquer obrigatoriedade. Sou obrigado a acreditar em qualquer absurdo? Em caso negativo, por que justamente nesse? Não há instância alguma acima da razão. Se a verdade das doutrinas religiosas depende de uma vivência interior que a ateste, o que fazer com as muitas pessoas que não têm semelhante vivência rara?

Pode-se exigir de todos os homens que empreguem o dom da razão que possuem, mas não se pode erigir uma obrigação que seja válida para todos sobre um motivo que existe apenas para bem poucos. Se alguém obteve a convicção inabalável na verdade real das doutrinas religiosas graças a um estado extático que o impressionou profundamente, que importa isso ao outro? A segunda tentativa é a da filosofia do “como se”. Ela afirma que em nossa atividade intelectual abundam suposições cuja falta de fundamento, cujo absurdo até, reconhecemos inteiramente. São chamadas de ficções, mas, por variados motivos práticos, teríamos de nos comportar “como se” acreditássemos nelas.

Tal seria o caso das doutrinas religiosas em razão de sua incomparável importância para a conservação da sociedade humana. Essa argumentação não está muito longe do credo quia absurdum. Penso, porém, que a reivindicação do “como se”¹ é de um tipo que só filósofos podem fazer. O homem que não seja influenciado em seu pensamento pelas artes da filosofia nunca poderá aceitá-la; para ele, a questão está liquidada com a confissão de absurdo, de irracionalidade. Ele não pode ser obrigado, precisamente ao tratar de seus interesses mais importantes, a renunciar às certezas que costuma exigir em todas as suas atividades habituais.

Recordo-me de um de meus filhos, que se destacou precocemente por uma insistência especial na objetividade. Quando se contava uma história às crianças, que a escutavam atentamente, ele vinha e perguntava: “Essa história é verdadeira?”. Depois que se respondia que não, ele se afastava com uma cara de desdém. É de se esperar que a humanidade logo passe a se comportar da mesma maneira em relação aos contos da carochinha religiosos, a despeito da intercessão do “como se”.

Atualmente, porém, ela ainda se comporta de modo bem diferente, e, em épocas passadas, apesar de sua indiscutível carência de comprovação, as ideias religiosas exerceram sobre ela a mais forte influência. Esse é um novo problema psicológico. Deve-se perguntar: em que consiste a força interna dessas doutrinas, a que circunstâncias devem a sua eficácia, que é independente de reconhecimento racional?


* Freud alude a Tertuliano (c.160 - c. 220), teólogo romano, um dos primeiros autores cristãos, apologético do cristianismo. A frase não se encontra em nenhuma obra sua, ms é atribuída a ele, e seu significado não é apenas "creio embora seja absurdo", mas "creio porque é absurdo", fazendo frente às heresias gnósticas: "Sem hesitações contrapomos  aos adulteradores da nossa doutrina o argumento preliminar da prescrição, em nome do qual proclamamos como única regra de verdade aquela que nos foi transmitida por Cristo mediante seus apóstolos., das quais é fácil constatar o quão tardios são estes discursos contestadores". (Cf. Giovanni Reale & Dario Antiseri, "História da Filosofia Patrística e Escolástica". Paulus, 2005, p. 78).

¹ Espero não cometer nenhuma injustiça se atribuo ao filósofo do “como se” uma perspectiva que também não é alheia a outros pensadores. (Cf. Hans Vaihinger, A filosofia do “como se”, 8ª ed, 1922, p. 68): “Incluímos no âmbito das ficções não apenas operações teóricas, indiferentes, mas também formações conceituais que foram imaginadas pelos homens mais nobres, às quais o coração da parte mais nobre da humanidade está afeito e que esta não se deixa arrebatar. E de modo algum queremos fazer isso – como ficção prática, deixamos que tudo isso subsista, mas como verdade teórica, perece.”


As Palavras de Freud. Cia. das Letras, 1998.

(...) No que diz respeito à proteção prometida pela religião aos seus adeptos, penso que nenhum de vós consentiria em subir para um automóvel cujo condutor declarasse não querer incomodar-se com as determinações que regulamentam a circulação para obedecer apenas aos ímpetos exaltantes da sua própria fantasia.

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