Parte 3
Freud segue analisando o universo religioso sob a ótica psicanalítica, sem descurar dos aspectos culturais, sociais e históricos. Cabe trazer um novo trecho do Prefácio para clarear algumas possíveis zonas de sombra:
Ao
escrever sobre religião naquele momento específico da sua obra, Freud luta para
estabelecer a psicanálise enquanto campo de saber que formula uma concepção de
aparelho psíquico, que por sua vez fornece a base de uma nova terapêutica para
o sofrimento mental humano. O sofrimento mental humano não é nem o produto de
forças exteriores, como a religião faz acreditar, nem o produto de lesões
corporais ou de heranças familiares, como a medicina fazia crer até então. É na
história singular de cada homem, em conjunção com as forças pulsionais que
habitam seu corpo e inscritas na constituição de seu psiquismo, que encontramos
as razões para o sofrimento psíquico que se expressa através de seu corpo e de
sua alma.
Agora é preciso
mencionar duas tentativas que dão a impressão de um empenho obstinado em fugir
ao problema. Uma delas, de natureza forçada, é antiga; a outra, sutil e
moderna. A primeira é o credo quia absurdum do padre da Igreja*. Isso
significa que as doutrinas religiosas escapam às reivindicações da razão, que
estão acima dela. Deve-se perceber a sua verdade interiormente, não é preciso compreendê-las.
Só que esse credo é interessante apenas como confissão; como imperativo, não
possui qualquer obrigatoriedade. Sou obrigado a acreditar em qualquer absurdo?
Em caso negativo, por que justamente nesse? Não há instância alguma acima da
razão. Se a verdade das doutrinas religiosas depende de uma vivência interior
que a ateste, o que fazer com as muitas pessoas que não têm semelhante vivência
rara?
Pode-se exigir de todos os homens que empreguem o dom da razão que
possuem, mas não se pode erigir uma obrigação que seja válida para
todos sobre um motivo que existe apenas para bem poucos. Se alguém obteve a
convicção inabalável na verdade real das doutrinas religiosas graças a um
estado extático que o impressionou profundamente, que importa isso ao outro? A
segunda tentativa é a da filosofia do “como se”. Ela afirma que em
nossa atividade intelectual abundam suposições cuja falta de fundamento, cujo
absurdo até, reconhecemos inteiramente. São chamadas de ficções, mas, por
variados motivos práticos, teríamos de nos comportar “como se” acreditássemos
nelas.
Tal seria o caso das doutrinas religiosas em razão de sua incomparável
importância para a conservação da sociedade humana. Essa argumentação não
está muito longe do credo quia absurdum. Penso, porém, que a reivindicação do “como
se”¹ é de um tipo que só filósofos podem fazer. O homem que não seja
influenciado em seu pensamento pelas artes da filosofia nunca poderá aceitá-la;
para ele, a questão está liquidada com a confissão de absurdo, de
irracionalidade. Ele não pode ser obrigado, precisamente ao tratar de seus
interesses mais importantes, a renunciar às certezas que costuma exigir em
todas as suas atividades habituais.
Recordo-me de um de meus filhos, que se
destacou precocemente por uma insistência especial na objetividade. Quando se
contava uma história às crianças, que a escutavam atentamente, ele vinha e
perguntava: “Essa história é verdadeira?”. Depois que se respondia que não, ele
se afastava com uma cara de desdém. É de se esperar que a humanidade logo passe
a se comportar da mesma maneira em relação aos contos da carochinha religiosos,
a despeito da intercessão do “como se”.
Atualmente,
porém, ela ainda se comporta de modo bem diferente, e, em épocas passadas,
apesar de sua indiscutível carência de comprovação, as ideias religiosas
exerceram sobre ela a mais forte influência. Esse é um novo problema
psicológico. Deve-se perguntar: em que consiste a força interna dessas
doutrinas, a que circunstâncias devem a sua eficácia, que é independente de
reconhecimento racional?
* Freud alude a Tertuliano (c.160 - c. 220), teólogo romano, um dos
primeiros autores cristãos, apologético do cristianismo. A frase não se
encontra em nenhuma obra sua, ms é atribuída a ele, e seu significado não é
apenas "creio embora seja absurdo", mas "creio porque é
absurdo", fazendo frente às heresias gnósticas: "Sem hesitações contrapomos aos adulteradores da nossa doutrina o argumento preliminar da prescrição, em nome do qual proclamamos como única regra de verdade aquela que nos foi transmitida por Cristo mediante seus apóstolos., das quais é fácil constatar o quão tardios são estes discursos contestadores". (Cf. Giovanni Reale & Dario Antiseri, "História da Filosofia Patrística e Escolástica". Paulus, 2005, p. 78).
¹ Espero não cometer nenhuma injustiça se atribuo ao filósofo do
“como se” uma perspectiva que também não é alheia a outros pensadores. (Cf. Hans
Vaihinger, A filosofia do “como se”, 8ª ed, 1922, p. 68): “Incluímos no âmbito
das ficções não apenas operações teóricas, indiferentes, mas também formações
conceituais que foram imaginadas pelos homens mais nobres, às quais o coração
da parte mais nobre da humanidade está afeito e que esta não se deixa
arrebatar. E de modo algum queremos fazer isso – como ficção prática, deixamos
que tudo isso subsista, mas como verdade teórica, perece.”
(...) No que diz respeito à proteção prometida pela religião aos seus adeptos, penso que nenhum de vós consentiria em subir para um automóvel cujo condutor declarasse não querer incomodar-se com as determinações que regulamentam a circulação para obedecer apenas aos ímpetos exaltantes da sua própria fantasia.
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