Obras

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sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019

ALÉM DA ALMA
Parte 4

Estamos perto do final da série, e reitero a recomendação: se você não leu os textos anteriores, faça-o, para absorver o conjunto da obra. São textos curtos de de fácil compreensão. Nesta penúltima parte, a questão em pauta trata das forças pulsionais que encorpam as crenças religiosas, ainda que tais pulsões se processem pelo poder dos desejos mais antigos sempre presentes no tempo histórico da humanidade, que atravessa uma penosa jornada de amadurecimento inteiramente dependente do amparo paterno. Um rito de passagem para a maturidade que vai muito além da alma.



Acho que preparamos suficientemente a resposta a ambas as perguntas. Ela se apresenta quando atentamos para a gênese psíquica das ideias religiosas. Estas, que se apresentam como proposições, não são produto da experiência ou resultados finais do pensamento; são ilusões, são realizações dos desejos mais antigos, mais fortes e mais prementes da humanidade, e o segredo de sua força está na força desses desejos. Já sabemos que a apavorante impressão do desamparo infantil despertou a necessidade de proteção – proteção através do amor –, que é satisfeita pelo pai; a percepção da continuidade desse desamparo ao longo de toda a vida foi a causa de o homem se aferrar à existência de um outro pai – só que agora mais poderoso.

Através da ação bondosa da Providência divina, o medo dos perigos da vida é atenuado; a instituição de uma ordem moral universal assegura o cumprimento da exigência de justiça que com tanta frequência deixou de ser cumprida na cultura humana; o prolongamento da existência terrena através de uma vida futura prepara o quadro espacial e temporal em que essas realizações de desejo devem se consumar. As respostas de questões enigmáticas para a curiosidade humana, como as da origem do mundo e da relação entre o físico e o psíquico, são elaboradas sob os pressupostos desse sistema; para a psique individual, significa um imenso alívio que os conflitos da infância que se originam do complexo paterno, nunca inteiramente superados, lhe sejam tomados e levados a uma solução aceita por todos.

Quando digo que tudo isso são ilusões, preciso delimitar o significado da palavra. Uma ilusão não é o mesmo que um erro, e ela também não é necessariamente um erro. A opinião de Aristóteles de que os insetos se desenvolvem a partir de restos, sustentada ainda hoje pelo povo ignorante, era um erro, e, do mesmo modo, a opinião de uma geração anterior de médicos de que a tabes dorsalis (do latim – problema de coordenação motora provocado por uma alteração degenerativa da medula espinhal, geralmente causada pela sífilis) era consequência de excessos sexuais. Seria abusivo chamar esses erros de ilusões.

Em contrapartida, foi uma ilusão de Colombo achar que tinha descoberto um novo caminho marítimo para as Índias. A parcela de seu desejo nesse erro é bem evidente. Pode-se chamar de ilusão a afirmação feita por certos nacionalistas de que os indo-germânicos são a única raça humana capaz de cultura, ou a crença, que apenas a psicanálise destruiu, de que a criança é um ser sem sexualidade. É característico da ilusão o fato de derivar de desejos humanos; nesse aspecto, ela se aproxima da ideia delirante psiquiátrica, mas, abstraindo da complicada construção desta, também dela se diferencia. Destacamos como essencial na ideia delirante a contradição com a realidade; a ilusão não precisa ser necessariamente falsa, quer dizer, ser irrealizável ou estar em contradição com a realidade. Uma mocinha plebeia, por exemplo, pode ter a ilusão de que um príncipe virá buscá-la. É algo possível; já aconteceram alguns casos desse tipo. Que o Messias venha e funde uma Idade de Ouro é muito menos provável; conforme a posição pessoal daquele que a julga, ele classificará essa crença como ilusão ou como análoga a uma ideia delirante.

Exemplos de ilusões que tenham se mostrado verdadeiras não são fáceis de achar. Porém, a ilusão dos alquimistas de poder transformar todos os metais em ouro poderia ser uma dessas. O desejo de possuir muito ouro, tanto ouro quanto possível, se encontra muito arrefecido por nossa compreensão atual das condições da riqueza; contudo, a química não julga mais impossível uma transformação dos metais em ouro. Portanto, chamamos uma crença de ilusão quando se destaca em sua motivação o cumprimento de desejo, ao mesmo tempo em que não levamos em conta seu vínculo com a realidade, exatamente do mesmo modo que a própria ilusão renuncia a suas comprovações.

Se, depois de nos orientarmos, nos voltarmos outra vez às doutrinas religiosas, podemos repetir: todas são ilusões, são indemonstráveis, e ninguém pode ser obrigado a tomá-las por verdadeiras, a acreditar nelas. Algumas são tão inverossímeis, se encontram de tal modo em contradição com tudo que descobrimos arduamente sobre a realidade do mundo, que podem ser comparadas – considerando devidamente as diferenças psicológicas – às ideias delirantes. É impossível julgar o valor de realidade da maior parte delas. Assim como são indemonstráveis, também são irrefutáveis. Ainda sabemos muito pouco para nos aproximarmos delas criticamente. 



A Civilização e os seus Descontentamos, Europa-América, 2005.

O homem comum entende como sendo a sua religião um sistema de doutrinas e promessas que, por um lado, lhe explica os enigmas deste mundo com uma perfeição invejável, e que, por outro, lhe garante que uma Providência atenta cuidará da sua existência e o compensará, numa futura existência, por qualquer falha nesta vida. o homem comum só consegue imaginar essa Providência sob a figura de um Pai extremamente elevado, pois só alguém assim conseguiria compreender as necessidades dos filhos dos homens ou  enternecer-se com as suas orações e aplacar-se com os sinais dos seus remorsos.

Tudo isto é tão manifestamente infantil, tão incongruente com a realidade, que para aquele que manifeste uma atitude amistosa para com a humanidade é penoso pensar que a grande maioria dos mortais nunca será capaz de estar acima desta visão de vida

É ainda mais humilhante descobrir como é grande o número de pessoas, hoje em dia, que não podem deixar de perceber que essa religião é insustentável, e, no entanto, tendam defendê-la sucessivamente, numa série de lamentáveis atos retrógrados. Gostaríamos de pertencer ao número dos crentes, para podermos advertir os filósofos que tentam preservar o Deus da religião substituindo-o por um princípio impessoal, obscuro e abstrato, e dizemos: "Não usarás o nome de  Deus em vão!". Alguns dos grandes homens do passado fizeram o mesmo, mas isso não serve de justificação para nós; sabemos porque é que tiveram que o fazer.

Um comentário:

  1. A solidão talvez seja o mal do século e o desejo de ter um guardião é a esperança de muitos. Mas, por mais habilidosos que sejam os nossos sentidos, eles realmente não conseguem reunir provas que confirmem a existência dos seres metafísicos que nos protegem. Adorei o texto. Parabéns, Carlos.

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