Obras

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sexta-feira, 8 de março de 2019


-8 MALEBOLGE
Ilustração: La barque de Dante (ou Dante et Virgile au enfers), óleo s/lona, Eugène Delacroix, 1822, Musée du Louvre

Encontram-se os Poetas no oitavo círculo, chamado Malebolge, o qual é dividido em dez compartimentos concêntricos. Em cada um deles é punida uma espécie de pecadores, condenados por malícia ou fraude.

Assim se abre o Canto 18 da Commedia (séc. 14), épico teológico do poeta florentino Dante Alighieri - il sommo poeta, um dos cânones da literatura ocidental. Somente no século 16 a obra foi rebatizada La Divina Commedia por iniciativa do também poeta florentino Giovanni Boccaccio. Nesse ponto da jornada, Dante e seu guia, o poeta romano Virgílio, encontram-se no portal do oitavo e penúltimo círculo (vale, penhasco, borda) do inferno, o Malebolge, destinado aos seres mais desprezíveis. Mas eles são tantos que este vale precisou ser dividido em dez fossos cercados por muros de pedra, cada um deles com distintos tipos de condenado. O texto ilustra e justifica o martelo crítico deste blog a alguns integrantes dessa súcia que você vai reconhecer. Dante não esqueceu ninguém: larápios, falsificadores, traidores, velhacos, tiranos, vigaristas, mistificadores, gananciosos, proxenetas, pervertidos, mercenários, promíscuos, facínoras, e ainda incluiu Papas, reis, rainhas, políticos, imperadores, cardeais, filósofos, poetas, etc.


Caronte, Salvador Dali, aquarela, 1960

Em linguagem mais contemporânea mesclada com expressões originais, que pouco mudaram nestes sete séculos, iremos a bordo na barca de Caronte que nos levará aos abismos mais profundos e sombrios para vermos de perto uma pequena parte desse Reino das Trevas com as "imagens pétreas" que se entranharam em nossa cultura e nosso inconsciente. Não se deixe medrar ante o odor repugnante dos rios de sangue, nem pelas súplicas, urros, tormentos, gemidos e gritos lancinantes de dor e desespero; não cerre os olhos à visão aterradora de corpos decompostos, mutilados, inchados, retorcidos, deformados, despedaçados e calcinados, sempre renascidos após devorados pelos vermes para um novo ciclo de torturas, pois logo à entrada lê-se a inscrição:


Lasciate ogni speranza, voi ch'entrate
Abandonai toda esperança, vós que entrais
La Porte de l'Enfer, Rodin, 1917


Primeiro fosso: Lá estão alcoviteiros e rufiões que exploram as paixões alheias a serviço de seus próprios interesses. Como pena, são continuamente açoitados pelos demônios para satisfazem seus apetites de toda natureza, principalmente sexuais.

Segundo fosso: Aqui estão os aduladores e as mulheres lisonjeiras chafurdando no esterco por se aproveitarem das necessidades dos homens, através da fala maliciosa que deturpa o entendimento das coisas. Estão mergulhados nas próprias fezes, vômitos e secreções que espalharam pelo mundo.

Terceiro fosso: Eis os simoníacos - traficantes do sagrado, hereges, magos, blasfemos, que transgridem e conspurcam os ensinamentos da Igreja.. São enterrados nus, de cabeça  para baixo - batismo invertido - com as pernas ardendo nas labaredas.

Quarto fosso: Encarceram-se os impostores que se dedicam às artes divinatórias; sua punição é ter o rosto torcido para trás, impedidos de olharem para a frente e forçados a caminhar ao reverso. Suas lágrimas escorrem pelas costas e nádegas como castigo por ousarem predizer o futuro, atributo que cabe somente a Deus.

Quinto fosso: Submersos em um lago de piche fervente, debatem-se os corruptos e os trapaceiros, traidores da confiança dos homens. Os que tentam colocar a cabeça para fora são torturados ou lacerados pelos demônios. Estão em poços ocultos, tais como suas tramoias feitas às escondidas.

Sexto fosso: Vestidos com reluzentes e vistosos mantos estão os hipócritas; suas vestes escondem pesada armação de chumbo. Se não sentiram peso na consciência no ato das suas vilanias, sentem-no agora ao arrastar grossos trajes de falso brilho que descarnam seus corpos.

Sétimo fosso: Aqui estão encerrados os ladrões, picados por serpentes peçonhentas; répteis e cães famintos devoram-lhes as carnes e roubam suas tripas e traços humanos, como fizeram com suas vítimas, apoderando-se do que não lhes pertencia por meio da violência e do terror.

Oitavo  fosso: É onde são punidos os falsos conselheiros, envoltos por chamas em oceanos de lava e fustigados por tempestades de raios, por arquitetarem a fraude e a calúnia. "O fogo que os atormenta oculta os conselheiros da fraude, pois seu mal foi cometido escondido. Por pecarem com a língua, sua fala só passa pela língua furtiva da chama".

Nono fosso: Estão confinados os semeadores da discórdia, maledicentes, infames. São atravessados por espadas nas partes do corpo representativas da discórdia perpetrada: cabeças, membros, genitais; língua e orelhas são cortadas, as vísceras expostas, os olhos vazados. São os criadores de cismas religiosos, incentivadores de conflitos sociais e instigadores de desavenças familiares.

Décimo fosso: Destinado aos falsificadores. São punidos com terríveis flagelos, tendo o corpo coberto por chagas pútridas, pestes, lepra, úlceras, sarna, doenças e loucura, representando tudo o que de falso fizeram: remédios, alimentos, obras, moedas, objetos, etc. São os prevaricadores, alquimistas, mentirosos e falsários. Sues corpos estão ocos, putrefatos e fétidos.



Notas......................
Commedia - Do grego Komoidía, de kômos (festa) e oidós (cantor); grupos encenavam curtas peças teatrais e declamavam sátiras de costumes e políticas. Com Dante, a Commedia ganhou o significado de "poema alegórico", diferente da 'comédia' como a conhecemos hoje. A Commedia representa a trajetória humana rumo ao paraíso, por isso Divina. Dante pulsa, mais vivo e necessário do que jamais esteve. Ele mesmo noz diz que importante é ler o que está oculto na polissemia poética das palavras, chave iniciática para o rito de purificação. Sua opus maximum vai além da mera descrição do báratro, é antes a autêntica e cristalina radiografia do humano. Em meio a densa escuridão, Dante consegue nos iluminar pelo melhor caminho.

Malebolge é nome composto criado por Dante a partir de male + bolgia, ou, "bolsão do mal", "vala maldita", ou ainda cavidade, fosso, cova, poço, caverna. Para alguns autores, na Antiguidade havia um gigante horrendo de três cabeças e três troncos até o quadril, uma criatura de natureza tripla: do homem, da serpente e do escorpião - clara alusão à própria fraude. Dante o transformou num monstro fantástico de corpo único como personificação de tudo o que há de malévolo no mundo.



Pimps et Séducteurs, 1892, Gustave Doré


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Henry R. Loyn. Dicionário da Idade Média, Zahar, 1991.
Jean Chevalier & Alain Gheerbrant, Dicionário de Símbolos, José Olympio, 1988.

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