Obras

Obras

sábado, 16 de março de 2019

PRIMITIVA MENTE MODERNA

A despeito de vivermos uma notável era de desenvolvimento tecnológico e científico, continuamos essencialmente presos ao pensamento primitivo mítico-religioso. Não há nenhum paradoxo nisso, ao contrário, basta seguir a linha do tempo da humanidade e veremos o quão isso é verdadeiro. Todas as tribos, sociedades e civilizações, em todos os tempos, desenvolveram suas ciência e sua tecnologia específicas, estruturalmente nada diferentes do que se observa no mundo contemporâneo. Nossa mente atual está envolta por uma finíssima película de "modernidade" que esconde (esconde?) uma inegável conduta primal instintiva de sobrevivência, dominação e medo, este como base da religião a partir do totemismo, impregnado na experiência humana. Observe as imagens do ontem e do hoje e tente negar que continuamos primitivos e identificados com nossos totens modernos. No fundo, só mudou a estética. 


     O pensamento mágico que legisla práticas sociais, ritualísticas e religiosas está vivo nas sociedades contemporâneas.
Só mudam a forma e a linguagem.

Uma explicação bastante resumida do totemismo e do pensamento mágico (mítico-religioso) poderia ser dada, mas é importante ressaltar que são muitos os autores e as interpretações; ainda que divergentes e contestadas, de algum modo se complementam. "O totem indica o fenômeno presente em todos os povos primitivos de transformar uma coisa (natural ou artificial) em emblema do grupo social e em garantia da sua solidariedade" (Abbagnano, p.863). Durkheim é enfático: "Eis no que consiste realmente um totem: é a força material sobre a qual se representam para a imaginação, através de toda sorte de fatos heterogêneos, essa substância imaterial, essa energia difusa, único objeto do outro" (p. 240). Eu me atreveria classificar o totem em três níveis: físico, metafísico e simbólico, mas falarei sobre isso em outro momento.


Frazer, Lévi-Strauss e outros entendem que, ao fundamentar o totemismo como um sistema, surge a explicação sobre a organização de clãs, a atribuição de emblemas animais ou vegetais aos clãs e a crença num parentesco entre o clã e seu totem. Para Malinowski, nas questões relativas ao totemismo e à magia, o importante está em perceber o que os nativos efetivamente fazem, como dão significado à vida e como agem. São os imponderáveis da vida cotidiana. Lévi-Strauss demonstra a relação entre ausência técnica e aspectos mágicos. Esse pressuposto, já levantado por Frazer, é que na ausência da ciência, o elemento aplacador de algumas incertezas entre os nativos seria a magia, recorrendo a ela para evitar ou desfazer temores. Você já leu algo semelhante por aqui, e não estávamos falando de totemismo.

Desse modo, dirá Lévi-Strauss, a dimensão mágica existente na relação dos homens com seus objetos se dá quando a técnica é incapaz de aquietar os espíritos dos primitivos. Desculpe repetir, mas isso você também já leu aqui. É nesse ponto em que a dimensão religiosa e mágica tem destaque com sentido prático: "Todos os ritos e práticas mágicas se reduziriam para o homem a um meio de abolir ou atenuar a ansiedade que ele sente ao atacar empreendimentos cuja saída é incerta. A magia teria, assim, uma finalidade prática e afetiva" (p. 147), grifo meu. Nesse sentido, como forma de elaboração sobre o mundo, os aspectos religiosos têm papel relevante porquanto se apresentariam como fontes primárias de conhecimento e especulação, no entender de Durkheim: "Os primeiros sistemas de representações que o homem produziu do mundo e de si mesmo são de origem religiosa” (p. 37).

O totem, ou o totemismo, é fundamentalmente um elemento distintivo de identidade do grupo, exercendo a função de unidade e coesão como representação de uma 'divindade' física - o patriarca ou o líder do clã, ou espiritual - entes da natureza. Essa posição obviamente lhe outorga um caráter eminentemente sagrado, portanto mítico e místico. Além do aspecto legislador, com práticas e ritos bem definidos e intransgressíveis, os aspectos religioso, mítico e místico/mágico apresentam-se como ordenadores moral; a consagração do totem é um jeito de representar a imortalidade do espírito. Você percebe que não há mudanças significativas no comportamento, nas atitudes e forma de pensar, e nos objetos de adoração nos dias atuais. O cenário "moderno" tecno-científico e uma cultura dita "civilizada" não ocultam o que podemos chamar de "natureza" humana: matar por um pedaço de pão, meio metro de terra ou um ideologia. Mata-se pelo prazer de matar, por esporte, diversão, ódio e psicopatias diversas, coisas que só o animal humano é capaz de fazer.

Vários estudos* apontam o que já se percebe há tempos: a infantilização geral que permeia toda a sociedade numa dimensão anda difícil de ser mensurada. É só olhar em volta. O homem contemporâneo se identifica e se fecha naquilo que lhe traz conforto e segurança emocional - sua "tribo" -, e se "ofende" quando algo não está de acordo com a sua maneira de pensar, de agir, de ser - vestuário, alimentação, sexualidade, política, etnia, religião, ideologia... Não se trata mais de simples polarização ou litígio entre duas zonas de conflito, mas de várias zonas e vários conflitos. Não havendo entendimento, razoabilidade, tolerância, inteligência, o clima será de hostilidade, truculência, tensão, extremismo, enfrentamento, a exemplo do que acontece quando crianças disputam um brinquedo. É a chamada geração "mimimi", geração do "choro" - mimados, ressentidos, ofendidos -, "vítimas" de uma sociedade emocionalmente desestabilizada, ou, como dizem os autores, uma geração a caminho do fracasso.

Pode-se fazer um prognóstico preocupante não muito longe da realidade: retrocesso, empobrecimento intelectivo, falta de lógica e clareza das ações, urgência de resultados (imediatismo), incúria de reflexões. Já falamos disso aqui: Há uma queda cultural orgânica patrocinada pela bolha epistêmica, pelo viés de confirmação, pela câmara de co, pela ilusão de profundidade explicativa e pela sala de espelhos. É o homem acuado em sua caverna num estado anímico de insegurança e esquizofrenia. Se você acha que a minha macro percepção da realidade é perversa, olhe em volta. Eu olho, e o que vejo para além das aparências e da superfície, sem filtros ou desvios, é um cenário contaminado, contagioso e progressivo de insensatez, ignorância e degradação moral que me assusta, num amálgama de pesar, vergonha e repúdio. O totemismo vive na esteira de una mentalidade assombrada, mítica, mística e infantil.

Essa ignorância do e no mundo aniquila a alteridade em seu sentido mais profundo, destroçando a ética e responsabilidade individual. O futuro é sombrio. Para o e crítico social Theodore Dalrymple - ele não é o único -, as fronteiras entre civilização e barbárie estão se esfacelando muito rapidamente, e não há como não concordar, basta olhara em volta, de novo. Penso que ele concordaria comigo se eu acrescentasse que está se desenhando uma "civilização da barbárie"terrível oxímoro -, desregrada e atomizada, que é brutalmente mais grave. Continue olhando em volta, os sinais estão claros por toda a parte. A temperatura está subindo e não é de aquecimento global que estamos falando.

Da mais remota tribo à mais poderosa nação do planeta, das legiões romanas às células terroristas, da mais pura tradição indígena ao mais explícito exibicionismo de narcisismo exótico; dos antigos rituais fúnebres às liturgias missais modernas, e dos rituais xamânicos, oferendas e cerimônias aos cultos divinatórios, feitiçarias e invocações místicas, o ser humano não mudou nada. Permanecemos sendo uma espécie "desconhecida", volátil e frágil, cada vez mais tão frágil que a segunda causa de morte no mundo é a depressão, só perdendo para intercorrências cardíacas. Cérebro e oração não andam lá muito bem e a tendência é piorar. Como nos alerta o dramaturgo e poeta romano Publius Terentius (195-185 a.C.), Homo sum, nihil humani a me alienum puto. Sou humano, e nada do que é humano me é estranho.


    O pensamento primitivo de supremacia, força, poder e distinção atravessa história.  Só mudam a forma e a linguagem

*Autores como Jonatham Haidt (NY University), Greg Lukianoff (Stanford Law School), Frank Furedi (Kent University), entre outros, fizeram pesquisas de largo espectro e publicaram a respeito da infantilização mas universidades e suas consequências em perspectiva global: The Codling of the American Mind: How good intentions and bad ideas are setting up a generation for faiulure. Haidt & Lukianoff, Penguin, 2018.



________________
DURKHEIM, E. As Formas Elementares da Vida Religiosa. Martins Fontes, 2003.
LÉVI-STRAUSS, C. A noção de estrutura e etnologia; Raça e  História; Totemismo hoje. Abril Cultural, 1980.
________. O Pensamento Selvagem. Papirus, 1989.
FRAZER, J. G. O Ramo Dourado. Circulo do livro, 1978.
LÉVY-BRUHL, L. A Mentalidade Primitiva. Paulus, 2017.
DIAMOND, J. Colapso. Record, 2007.
ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia. Martins Fontes, 2007.
MALINOWSKI, B, Magia, Ciência e Religião Edições 70, 1984.
DALRYMP[LE, T. Nossa Cultura... ou o que restou dela.  É Realizações, 2015.

Um comentário:

  1. Adorei o texto, Carlos. Através da grandeza da sua escrita, fui transportada para outras ideias. "Como nossos pais", de Belchior, é uma delas. Afinal, somos um reprise dos nossos ancestrais, não tem jeito. Beijos

    ResponderExcluir