Obras

Obras

sábado, 30 de março de 2019


TERRA DE INSANOS


O texto de hoje é transcrição integral da coluna de Joel Pinheiro da Fonseca, publicado na Folha de São Paulo em 12/03/2019. A matéria tem tudo a ver com a tônica deste blog, além remeter ao post Stultifera Navis, tanto que o título originalmente pensado para o post de hoje era Circulus Stultorum - Círculo de tolos. "Terra de insanos" é mais contundente. O texto é tão claro e tão óbvio que dispensa comentar, nada diferente do que você está acostumado a ler aqui, só que agora por outras letras. Os sublinhados são links originais. O cardápio é variado - uma crença esdrúxula, teoria da conspiração, mania persecutória, defesa em bloco, lógica torta, rejeição social... um banquete para a Psicanálise, a Psicologia do Comportamento, Neurociências e, em casos mais graves, Psiquiatria. Na sequência, por oportuno, resenha de matéria veiculada no blog Factor 3024 de Alejandro Agostinelli acerca de um "contatado" brasileiro que apresenta uma "nova e revolucionária" teoria, a da Terra... convexa, segundo o parlapatão, ensinada pelos seus "amigos alienígenas". (Tradução livre).

O leque de crenças toscas e absurdas inclui, além da Terra plana alvo da matéria, Terra oca, discos voadores, fadas, anjos, espíritos, simpatias, superstições, cristais e muito mais. Toda crença é um areal movediço do qual só se escapa se alguém jogar uma corda. Repito, este blog se propõe ser um candeeiro iluminando o caminho para longe deste charco. As escolhas que fazemos determinam o mundo em que queremos viver.

A Terra não é plana, mas...
Joel Pinheiro da Fonseca
Economista, mestre em filosofia pela USP


documentário "A Terra é Plana" (Behind the Curve, Daniel J. Clark,2018), disponível no Netflix, mão apenas sacia nossa curiosidade mórbida por um movimento de crenças bizarras (no caso, de que nosso planeta não é uma esfera e sim um disco). Ele nos mostra a dimensão política da crença humana e o quão pouco somos guiados pela razão. No Brasil, ainda podemos considerar a esfericidade da Terra como uma verdade óbvia. Podemos buscar entender os terraplanistas, portanto, sem levar a sério o mérito de suas teses. Se eles crescem e se organizam,  não é pela racionalidade dos argumentos. A especulação tem que estar em algum outro mecanismo psicológico, que guardará lições sobre muitos outros movimentos. Primeiro ponto provável: as redes sociais foram condição necessária para o terraplanismo florescer. Nelas, pessoas comuns podem gerar seu conteúdo e chegar a milhões de outras sem passar por nenhum crivo da ciência institucional. Comunidades se formaram e se retroalimentam, fortalecendo o sentido de uma causa comum e convertendo pessoas que, não fosse pelas redes, jamais questionariam o formato da Terra 

Segundo ponto: os terraplanistas falam a língua do homem comum, enquanto a linguagem dos cientistas lhes é inacessível. Science just throws math at us, diz um dos expoentes do movimento, contando vantagem. E ele está certo. Alguns dos cientistas ouvidos pelo documentário, por sua vez, lutam para não transparecer o óbvio desprezo que sentem pelo terraplaniusmo, o que só fortalece nos membros o sentimento de que o sistema os persegue.

Afinal, é impossível acreditar que a Terra é plana sem, ao mesmo tempo, acreditar que toda a comunidade científica, as universidades, o governo e a mídia estão metidos numa conspiração para nos enganar sistematicamente. Sendo assim, nenhum argumento vindo da comunidade científica será persuasivo. As crenças humanas não se destinam apenas a conhecer a verdade, cumprem também uma função social de coesão geral e sentido de pertencimento. Somos apresentados a pessoas que se sentiam sozinhas e excluídas. Em muitos casos, o terraplanismo só acentuou o isolamento da família, mas apresentou uma comunidade  na qual se sentem valorizadas e na qual têm o reconhecimento que lhes era negado.

Pois as energias dos terraplanistas não estão no debate científico. Seus olhos brilham é com a política:
querem ocupar espaços (no currículo da educação pública, por exemplo) e se fazer ouvir. Organizam eventos, militam nas redes militam nas redes, veem-se como um coletivo em uma luta heroica contra um inimigo maligno. Ninguém se convence racionalmente de que a Terra é plana e por isso passa a rejeitar o sistema. O messianismo é justamente o inverso: a pessoa já queria, por algum motivo, rejeitar o sistema e, para isso, o argumentos baratos fornecem uma justificativa fácil. Não são, nisso, menos racionais do que nós. Afinal, não temos a prova da maior parte de nossas crenças  (entre elas, a esfericidade da Terra); elas dependem de nossa confiança nas instituições que nos rodeiam. É isso que está em jogo.

Limitar a expansão de seitas em um mundo no qual a informação circula livremente (e é bom que circule, não queremos voltar atrás) é um dos desafios deste século. O terraplanismo exige um salto de fé tão grande que provavelmente encontrará limites naturais. Comunidades de crenças menos absurdas embora também falsas podem ir mais longe e fazer estragos maiores.


•••

O dia em que silenciaram Urandir, o pregador da Terra convexa
Alejandro Agostinelli

"O congresso não permite esse tipo de estultície". Com estas palavras. o presidente do Congresso Nacional do Paraguai, senador Silvio Ovelar, impediu que o palestrante fizesse sua apresentação na sala Bicameral, em 14 de março último. O sujeito em questão era o brasileiro Urandir Fernandes de Oliveira, conhecido no meio ufológico quando se disse amigo do extraterrestre "Bilu", em 2010. Anos antes, Urandir havia sido condenado por vários delitos - fraude imobiliária, falsidade ideológica e curandeirismoou seja, um vigarista contumaz. O blog faz um apanhado sobre sua trajetória ilícita:


Ao longo dos anos, o desdobramento daqueles que buscavam se relacionar com os presumíveis ocupantes de discos voadores ou "irmãos espaciais" se espalhou, tanto que os cientistas sociais o consideram um movimento religioso em si mesmo. A natureza dessas associações tende a ser homogênea; eles são quase sempre inspirados pelo Espiritismo Cristão, Teosofia ou baseados em ideias de ufologia e ficção científica. A criatividade religiosa brasileira acrescenta uma vantagem de heterogeneidade: no país vizinho há comunidades lideradas por contatados cuja trajetória, doutrina e experiências recebem todo tipo de influências. Na cultura mágica religiosa brasileira existe pelo menos uma versão derivada de cada denominação. Há um discurso evangélico, outro católico, oriental, gnóstico e africanista, quando não são sincretismos que retrabalham as mais diversas visões de mundo. A mesma "ufologia científica" brasileira admite a espiritualidade como uma corrente legítima de pesquisa. Essa mistura de busca espiritual e científica faz parte da paisagem religiosa brasileira, o desrespeito pela diversidade religiosa, sexual e cultural está na agenda do dia do mais alto poder do Estado.


O blog traz um extenso levantamento biográfico, as atividades do farsante, vídeos das "performances paranormais" e outros documentos como, por exemplo, o depoimento de Elaine Sabaliauskas, ex-secretária e ex-namorada de Urandir: "Tudo tem um preço para ele; quando ele faz seus truques, ele só pensa em ficar com o dinheiro das pessoas. Agora [em 2000] está vendendo terras, mas os compradores não têm a escritura. Como ele está sempre cercado por seus homens, ninguém pode questioná-lo". Felizmente desta vez sua farsa não foi adiante porque as autoridades paraguaias foram bem mais sensatas e inteligentes que as brasileiras. Leia a matéria, o link está aí. Este assunto é grave, e voltarei a ele em outro momento, mas se quiser ler algo, vá em Tambores batem, bonecos dançam.


_________________

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/joel-pinheiro-da-fonseca/2019/03/a-terra-nao-e-plana-mas.shtml?utm_source=facebook&utm_medium=social&utm_campaign=compfb

http://factorelblog.com/2019/03/14/el-dia-que-urandir-no-predico/

2 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

    ResponderExcluir
  2. Sim, seu Reis, o ser humano é complicado! Picaretas como os citados são legitimados pela multidão de dementes que os idolatra, como mostra o vídeo no link abaixo, em que fala o sr. Caio Fabio. Em tempo: não sou religioso.

    Abraço.

    https://www.youtube.com/watch?v=a5oUg9ww9no

    ResponderExcluir