Obras

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sexta-feira, 24 de janeiro de 2020


À PROCURA DE UM ROSTO

Junte o que dizem Guy Debord em A Sociedade do Espetáculo, Theodore Dalrymple em Podres de Mimados, Gilles Lipovetsky em A Era do Vazio e Jean Baudrillard em A Ilusão Vital e O Paroxista Indiferente, e, de quebra, o “mundo líquido” de Bauman, só para ficar nos mais contemporâneos, e você terá a exata noção do que é uma geração de gente ressentida, egoísta, infantilizada, desregrada, insensível, desnorteada, desinformada e não pensante, verificável a qualquer tempo e lugar. O que sustenta esse corpo é o tripé formado pelo individualismo, narcisismo e exibicionismo midiático. O que se constata é que a sociedade atual se organiza através da lei da renovação acelerada, centrada na efemeridade e no apetite pela novidade,  tendo como signos a sedução, a indiferença e o consumismo, principalmente. Parece que estou sendo repetitivo em relação a posts anteriores, e estou mesmo.

Lipovetsky concebe o poder pela sedução manipulada pela informação, multiplicação e ampliação do leque de opções hedonistas à disposição do sujeito consumidor. A indiferença é constituinte da personalidade pós-moderna não pela falta, mas justamente pelo excesso de escolhas, determinado pela apatia e desapego do indivíduo. O  interesse de hoje amanhã não será. Desaparecem os vínculos com os valores morais e sociais tradicionais, a preocupação com a res publica – a coisa pública, a sociedade, o próximo. A deserção generalizada com a esfera coletiva abre espaço para o narcisismo despontar onde o ambiente privado passa s ser o centro, sem limites. 

Nessa sociedade metamórfica, o indivíduo está submerso em seu universo particular de subjetividades, representações e experiências, resultando um rearranjo nas relações entre pessoas, entre elas e o mundo e na visão de si mesmas. Para Debord, “o espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre sujeitos, mediada pela imagem”. Para Baudrillard, a imagem não passa de um simulacro. Outro ponto de consenso é a pós-modernidade trazendo um novo quadro de desigualdades e formas de dependência, fazendo surgir um personagem – o hiper narciso –, engajado muito mais em práticas grupais na busca de prazeres efêmeros como fuga da dor da solidão e da finitude.  

Debord condena esse espetáculo desmedido da imagem, a alienação e a massificação banal (encenação), enquanto a imagem hiper-real  – o virtual mais real que o real – de Baudrillard atesta a desrealização do mundo e o fim do “in-divíduo” – o não divisível. É aí que a imagem tem função gregária, gerando laços sociais e criando micro grupos, circunstanciais, transitórios, superficiais e convenientes, de pessoas com a mesma (des)identidade que vivem uma sucessão de instantes eternos assentados no prazer. Sendo a imagem um simulacro, uma ilusão, o que está lá já não está mais lá, é só um instante fugaz do passado enquadrado pelo presente.

Não estou mais falando de fanatismo e barbarismo, mas daquilo que pode ser a sua semente e seu nutriente. Estou falando do narcisismo extremado do sujeito que só quer – na verdade precisa –  aparecer, ser visto, filmado, fotografado, incensado, sair do anonimato e da total irrelevância pra um protagonismo infantil e banal. Quer ser celebridade, expor o que pensa ser seu rosto ou será solenemente ignorado, sucumbindo na solitária, pobre e falsa imagem de si. Estou falando do jovem que ameaça matar inocentes apenas para “fazer história na comunidade”, ciente que a mídia se encarregará de fazer repercutir o espetáculo da insanidade.

Estou falando da garota que expõe glúteos e outras anatomias com a “sensualidade” de um prostíbulo; estou falando do imbecil rancoroso que destila preconceito e hostiliza o outro com calúnias, leviandades, intolerância, crispação, ódio e impropérios gratuitos. Umberto Eco sangra a ferida ao dizer que a internet alçou o idiota da aldeia a porta-voz da verdade. Nelson Rodrigues, muito antes dele já dizia, cáustico, que a tragédia virá quando os imbecis se darem conta de que são maioria. A marcha dos irresponsáveis está em curso. Quando tudo é vaidade, o que sobra é silêncio.

Estou falando dos medíocres que, em nome de sua ideologia, arreganham os caninos, babam e mordem, incentivando ferocidade e baderna; estou falando dos celerados que desafiam gangues rivais para um suicida confronto de forças. Estou falando do sujeito que, nada tendo a dizer ou mostrar, exibe sua absoluta nulidade com opiniões vãs, taras, futilidades, obsessões e estupidez. O bem se manifesta sob uma fina camada de cultura, portanto, externo ao homem; o mal é matéria bruta visível, inerente ao homem. Qual face está lá, a higienizada das redes ou a nua, sem retoques? Dê uma espiadela no panorama do mundo e a resposta salta. 

O problema não está na rede, mas no uso que se faz dela, uma  criatura de um só corpo, múltiplos olhos e infinitas vozes. Uma vez investindo exclusivamente em si e em interesses pessoais, caem por terra as relações humanas, o afeto da presença, a empatia, o debate renovador e o diálogo produtivo. Nessa contrição do ser, a tendência é sentir-se cada vez mais só e vazio por não saber desprender-se de si. Por faltar-lhe um rosto, procura-o em vão nesse mar de falsos espelhos que é a sua tribo, um exército de clones entreolhando-se capturados no tempo. Eis aí o comportamento de manada tantas vezes citado aqui. Quanto mais o gueto cresce, mais o rosto desaparece. Quanto mais o sujeito se quer diferente, mais igual aos diferentes será; sendo sempre ele mesmo, será diferente por não encontrar outro igual. Então terá seu rosto.

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