Obras

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sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

SINAPSES DIGITAIS

Sinapses digitais? Sim, não é teoria delirante muito menos ficção, é pesquisa científica de quase uma década que corre o mundo e começa a dar os primeiros resultados. Trata-se de um neologismo que procura explicar o que está acontecendo com nosso cérebro a partir das interações com o universo digital. Sim, sua massa cinzenta está mudando e você nem percebe. E isso é bom ou ruim? Depende de como se olha a questão. De saída, é claro que os benefícios da tecnologia digital são extraordinários, promovendo a difusão do saber a patamares inimagináveis. Porém, no outro prato dessa balança, há aspectos relacionados diretamente ao uso desse instrumento que têm um peso considerável na construção do conhecimento. É o que contém esse prato que nos interessa, baseado nos estudos em curso, na literatura que crescente, nos debates, fóruns e na justa preocupação dos especialistas.

A dinâmica da tecnologia digital está assentada na velocidade da resposta de dados, na capilaridade e volume de informação, que provoca o estrangulamento dela mesma como resultado da produção irrefreável de conteúdo ausente de filtros e critérios. A primeira constatação empírica que se tem é que o sujeito perde a capacidade de apreensão total desse conteúdo, atenção fragmentada e dispersa, desconexão seletiva da realidade, rejeição à leitura de textos mais complexos e, principalmente, incapacidade de reflexão profunda e prolongada.

O que preocupa de fato vem agora. Você leu aqui que está havendo um emburrecimento generalizado, que jovens estão desprezando a literatura de conteúdo e que a capacidade de pensar está esvaziando em todos os estratos, dado que se verifica desde os anos 1980 com crescimento nas últimas duas décadas, coincidindo com a consolidação da internet. Os trabalhos mostram que há uma nova  geração de crianças incapazes de pensar por si próprias, e mais que isso, o ingresso excessivo mo mundo virtual pelos jovens e adultos altera a química cerebral, fazendo com que haja uma regressão cognitiva e uma infantilização comportamental. O cérebro é extremamente sensível ao ambiente, reagindo, modificando e ajustando-se a ele continuamente, diz a neurocientista Susan Greenfield da Oxford University. Sua colega neurocientista, a americana Maryanne Wolf, afirma que As pessoas estão percebendo que algo nelas está mudando, que é o seu poder de leitura”. 

Para Maryanne, uma das razões para essa mudança está no uso das telas - celulares, tablets, e-books - em tempo quase integral, cirando novos hábitos no processamento das informações que lemos. A leitura de múltiplos textos em tela no lugar da página impressa faz com que “passemos os olhos” muito superficialmente, esfacelando nossa capacidade de entender ou fazer uma análise crítica de argumentos mais complexos, ou ainda de estabelecer empatia com pontos de cista contrários. Tudo isso se reflete, segundo a autora, na performance profissional, na vida social, nas escolhas que fazemos o tempo todo. Impacta, também, na comunicação, no patrimônio cognitivo, na percepção da sutilezas linguísticas, na construção de simbolismos, na captura das estrelinhas e na elaboração de pensamentos originais - os insights.

A sua (dela) especialidade são os processos cognitivos e letramento, e ela é taxativa ao afirmar que nosso cérebro não é programado para interpretar letras e números, um aprendizado que se estruturou ao longo do tempo, cerca de 6.000 anos atrás, ao contrário da visão e da linguagem oral. Cada leitura, sem exceção, requer seu tempo específico de absorção e entendimento. Uma frase, um parágrafo, uma página, um capítulo, um livro, todos pedem atenção, reflexão e compreensão integradas. Quanto maior o texto , menor o tempo de compreensão profunda, daí os tweets serem a ferramenta mais usada no mundo da comunicação coletiva. A preocupação  da autora é fundamentalmente com as crianças, os novos leitores, os leitores digitais. Que tipo de leitores estamos formando? Se perdermos gradualmente a capacidade de examinar como pensamos, perdemos também a de examinar serenamente o que pensam aqueles que nos governam”, alerta Maryanne.

Um elemento importante detectado pelas pesquisas é a diminuição na capacidade de memória, desde os dados mais simples como telefones, datas e nomes, aos mais complexos. A comunicação digital provocou um empobrecimento da redação, do vocabulário, da leitura e da interpretação de textos, logo, da compreensão da realidade. O virtual, certo ou errado, assumiu o papel central das experiências reais, do entendimento do mundo. A informação multiplicada se sobrepõe à reflexão, a imagem à palavra, o que não é ao que é, o impessoal ao presencial. O bônus” da individualidade tem o ônus do isolamento. A contradição: o surgimento de grupos ou tribos dos igualmente isolados. 

A combinação individualismo-solidão implica combustão espontânea: estou só e preciso ser visto. Como um náufrago, lanço mensagens engarrafadas na esperança de ser lido, ouvido e achado (amado?).  A cacofonia babélica é ensurdecedora. Se o sujeito passa o tempo todo ocupado em exibir-se para seu público-alvo imaginário, é razoável supor que seu cérebro esteja estacionado na mesma proporção. A impaciência para se obter o máximo de informação desmantela a leitura crítica e consequentemente de se chegar ao conhecimento efetivo. Maryanne novamente: Deixamos de estar profundamente engajados no que estamos fazendo, o que torna mais improvável que sejamos transportados para um entendimento real dos sentimentos e pensamentos do outro”.

E o que afinal sinapses têm a ver com aprendizado? Aprender é uma função complexa que implica modificações neurológicas celulares e eletroquímicas. A formação de uma sinapse está intimamente ligada à capacidade de aprendizagem e na interação com o lugar, pois as estruturas do sistema nervoso processam as informações criando, fortalecendo ou enfraquecendo as sinapses. Treino, memorização e constância de uma dada habilidade estimulam sinapses e aumentam a qualidade no processamento da ação. O contrário é igualmente válido, se uma habilidade é pouco explorado, a tendência será as sinapses perderem ritmo, desempenho e função até desaparecerem. Aí as s cavernas nos esperam de volta.




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Maryanne Wolf, O Cérebro no Mundo Digital. Contexto, 2019.

2 comentários:

  1. Intervenção rápida:

    Será mesmo, seu Reis? Tudo é questão de opinião. Emburreceram a humanidade o rádio, a televisão e os gibis? Cada novidade traz sua carga de dúvidas e temores e a bola da vez é a Internet. É que certo que tudo tem seu lado negativo; prefiro me concentrar no lado construtivo das coisas.

    O sonho do intelectual é que todos fôssemos brilhantes, talentosos e geniais. Resta ver se o mundo se sustentaria com uma população de phds enormemente ilustrados e com as mesmas ideias e ideais; para complicar, não mencionarei a possível existência de vocações misteriosas, destino, programação e algo do "outro lado", pois seria pressupor a existência de um criador, e reencarnação, evolução, etc. Fazemos parte de um sistema muito além da nossa compreensão e controle; nele, cada macaco parece ocupar um galho determinado.

    O assunto é deveras complexo.

    Abraços.

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  2. Excelente análise, Carlos. Esses novos tempos me preocupam demais, talvez porque sinta na pele as diferenças de uma era em que se usava a pena, o papel e as ideias com sabedoria porque não havia como ficar apagando, alterando e jogando fora o que parecia fugaz, errado ou fora de lugar. Havia um esforço para acertar, mesmo errando. Viajar dessa época para a atual (não importa quantas estações deixamos para trás), em que um simples toque na tela apaga (delet), inicia (start), recarrega (reload), faz surgir essa sensação de liquidez de que Zygmunt Bauman tão sabiamente falava e que Salvador Dali antecipava em seus relógios preguiçosos se desmanchando em uma genial visão da Persistência da Memória (não seria... destruição?). Grande reflexão, meu amigo, e é muito bom iluminar as sinapses que nos restam, dando-lhes o que fazer: pensar, e, se possível, o xeque-mate: agir! Adorei esse caminho instigante, provocador, que atrai nossa mente para o alto do ideal e nossos pés para o chão de uma realidade que precisa ser reinventada, mas que bem poderia ser revisitada talvez na conta de meio século. E não é saudosismo não!

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