Obras

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domingo, 12 de janeiro de 2020

A INSUSTENTÁVL FRAQUE
A INSUSTENTÁVEL FRAQUEZA DO SER
Há um cansaço da inteligência abstrata,
e é o mais horroroso dos cansaços.
Não pesa como o cansaço do corpo,
nem inquieta como o cansaço do saber.
É um peso da consciência do mundo,
um não poder respirar da alma.
Bernardo Soares
(heterônimo de Fernando Pessoa)


A trilogia sobre opiniões e crenças terminou, é certo, mas não poderia deixar de trazer, uma vez mais, em continuidade, a voz de Freud sobre a questão, de tão fundamental e necessária. Ele dissecou de tal forma as entranhas psíquicas do ser que seu repertório é imenso, e seu estudo sobre religião e sistema de crenças não envelhece nunca. Para ele, a religião não é detentora do monopólio das construções ilusórias do homem, mas contribui majoritariamente para manter as crenças ativas. Segundo Morano, O segredo de sua força [religião], como no sonho, reside exclusivamente na força do desejo da qual derivam.” Lembro sempre que os sublinhados são destaques meus.

Do ponto de vista freudiano, a crença religiosa, ou as crenças de modo geral, no ponto em que projeta desejos ao mundo exterior, o mundo real, e gera ilusões contrárias a essa realidade, transforma-se numa demência de caráter alucinatório. Orar torna-se um solilóquio, um diálogo de cegos em que o transcendente é o próprio sujeito, encarcerado em seus desejos mais temidos e ocultos. A caracterização da crença (todo ato religioso em essência) como quadro ilusório é exatamente por gerar uma realidade completamente avessa erguida sobre os próprios desejos dos quais não encaramos de forma consciente. Tal irracionalidade ocorre porque o inconsciente não conhece contradições, como nos sonhos. Tudo que lá acontece é perfeitamente natural, coerente, faz sentido.


Freud considerava a magia, o medo, a fantasia, o desejo, a poesia, o devaneio, o sonho como fases formadoras do sistema de crenças, entendendo serem a magia e a feitiçaria elementos que mantinham ativo tal  sistema. O homem cria a magia como forma de se impor sobre o mundo, as forças da natureza, o universo, os animais, as doenças, os homens. Ademais, ele trata da onipotência do pensamento como uma ilusão em relação ao mundo externo, como já se disse, o desejo de que o mundo seja o que se deseja que seja:
A primeira imagem que o ser humano formou do mundo - o animismo - foi psicológica. Não precisou, então, de base científica, uma vez que a ciência só começa depois de ter-se dado conta de que o mundo é desconhecido e que, por conseguinte, tem-se de procurar meios para conseguir conhecê-lo.
Freud vê o homem alimentando a crença onde a fantasia é uma força maior que a da mente que a cria, identificando troca tanto nos seres humanos primitivos quanto nos neuróticos, o que propõe a compreensão de que, nos dois sistemas de crença, a fuga do real tem certo limite ligado ora ao desejo de se situar no mundo, ora ao desejo de fuga desse mundo, característica típica do homem modernoO psicanalista vienense aborda três crenças importantes presentes no animismo: 1) o povoamento do mundo com seres espirituais bons e maus; 2) são a causa dos fenômenos; 3) somos povoados desses espíritos. Isso indica que sua visão sobre o animismo revela que os elementos que criamos para nos situarmos não precisam necessariamente serem verdadeiros nem lógicos, e não é pelo fato de se usar tais elementos que estamos perto ou longe da neurose: “Essas almas que vivem nos seres humanos podem deixar suas habitações e emigrar para outros seres humanos; são o veículo das atividades mentais e são, até certo ponto, independentes de seus corpos”.

Todos sabemos que a compreensão da obra de Freud não é fácil, em absoluto, e que é preciso muitos anos de dedicação exclusiva a tal empreendimento. Logo, entendo que o texto de hoje, apesar de necessário, é torturante em sua complexidade. Não estou livre desse martírio. Talvez o próprio Freud possa nos ajudar:
Quando o indivíduo em crescimento descobre que está destinado a permanecer uma criança para sempre, que nunca poderá passar sem proteção contra estranhos poderes superiores, empresta a esses poderes as características pertencentes à figura do pai; cria para si próprio os deuses a quem teme, a quem procura propiciar e a quem, não obstante, confia sua própria proteção.
O desejo surge na teoria psicanalítica como propulsor da atividade humana, e, manifestado de diversas formas, é especificamente na maneira como  se manifesta no sonho que poderá nos servir de base para compreender como ele se coloca nas outras esferas da vida. Sonhar, diz Freud, é realizar um desejo alucinatoriamente. Um desejo inconsciente, não podendo manifestar-se de forma desperta, se utiliza do estado de relaxamento da vida onírica para ter voz. A psicanálise mostrou que existem conflitos internos no próprio sujeito em distintas instâncias psíquicas o tempo todo. Dessa forma, desejos que pertencem ao sistema inconsciente estão lá por não poderem ter acesso à consciência. Não podendo se manifestar, deslocam-se e condensam-se numa mudança de foco por meio associativo, transferindo sua representação na vida consciente para uma imagem, por exemplo.

Concluindo, até onde me foi possível depreender, as crenças humanas - ainda que ilusões - se formaram de modo natural no curso de um longo processo histórico de identificação de si e do mundo, que estabeleceu regras e o sentimento de esperança, proteção, segurança e sentido existencial. Esperança da imortalidade, proteção contra as tormentas da vida, segurança contra as ameaças naturais. Cada um de nós possui seus credos - verdades que se inventa, cria sonha, projeta, desejando que sejam verdadeiras. Os pressupostos religiosos não mais dizem a uma realidade óbvia de transcendência, mas antes, a uma expressão deformada de desejos inconscientes. É nesse ponto que ilusão e crença se aproximam e se unem. Freud inaugurou uma escola de pensamento, alçando o homem a um ser pensante de si mesmo, e isso tem um peso incalculável. Para muitos, um peso insustentável.


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Carlos Dominguez Morano, Crer Depois de Freud, Loyola, 2014.
Sigmund Freud, Totem e Tabu. Cia das Letras, 2006.
_______. O Futuro de uma Ilusão. LP&M, 2010,

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