Obras

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quinta-feira, 2 de julho de 2020


NÃO SUBESTIME A REALIDADE


Você leu aqui que, quando fatos se tornam versões, o pesadelo começa. Alguma dúvida? Se você discorda, é porque está subestimando a realidade, e ela vai te pegar de jeito por essa negligência. A pandemia é só o pano de fundo para a conversa de hoje, que vai servir como parâmetro. Ou pretexto. Em nome de “versões”, tem se tomado uma série de medidas que contrariam o bom senso e a mais óbvia clareza dos fatos. Em todas as instâncias, repito, todas, a hostilidade aflora na pele, a violência galopa na ponta dos cascos, eu disse cascos, atropelando a ética, a civilidade, a racionalidade. Pior é quando parte do cume da pirâmide ao destilar o fel cáustico, que escorre e se infiltra pelas fendas erodindo tudo abaixo e à volta. Abra o mapa do mundo e veja as nódoas da insensatez esparramadas sobre ele.

Não adianta refutar certas verdades. Insisto, não adiantaSe há um contágio global, não há como negar ou ignorar os estragos e o desastre que vem causando, e isso é um fato! Se a mortalidade tem um percentual baixo em relação à taxa de contaminação, fato é que ele mata. Não se dissimula dez milhões de infectados e 500 mil mortos. É macabro pensar que a morte está literalmente no ar, o ar que respiramos, e isso não é figura de linguagem, é fato! Quem acha esse percentual irrelevante é porque criou a sua versão do fato, subvertendo ou invertendo-o: o que é não é, o que não é passa a ser o que ele acha que é. Não é assim que a realidade funciona.

Furtar-se às evidências é enveredar pelo caminho da omissão, do delírio, da fantasia, até chegar ao perigoso limiar da psicopatia. Talvez a Psicologia veja isso como uma forma de mentir parara si mesmo. Um amigo comentou que a realidade é mais louca que qualquer ficção. Eu diria que a realidade não é louca, ela é o que é; louca é a ficção, a imaginação, porque nelas tudo se cria, inclusive uma outra realidade. Quem acha a realidade louca se abriga na fantasia, e fica dançando nas costas do jacaré em meio a tempestade.

Quando a Ciência é questionada, só o é por quem não é do ramo, portanto, ignorante em assuntos científicos. Ela própria se encarrega de ter suas incertezas, suas dúvidas e de admitir seus erros, não precisa de nenhum forasteiro metendo o bedelho onde não deve. Esse princípio se aplica a todos os campos do saber, incluindo, claro, o tema central deste blog. Se quiser discordar ou discorrer sobre algum assunto, vá estudá-lo e a tudo que lhe diga respeito, produzindo sua própria oficina de conhecimento, mas não pense que será fácil, a complexidade o espera na porta de entrada. Quer um exemplo?

Eu precisei de três décadas para compreender os meandros da mente e os humores do comportamento humano em relação às crenças. Cheguei até aqui imerso em águas nunca imaginadas e ainda tenho uma bela jornada pela frente. No entanto, ora veja, tem gente que mal chegou no mundo e acha que já sabe das coisas, porque montou seu entendimento sem ter atravessado o túnel das experiências reais consolidadas, e sem ter encorpado a voz o bastante para dialogar com o mundo. Outros leem meia dúzia de livros e trocam ideias na sala de espelhos da câmara de eco e supõem que isso seja suficiente para formatar seu saber. Em ambos os casos, são novatos numa estrada poeirenta e vão ter muito sol queimando no lombo antes da próxima parada.

Eu poderia falar sobre uma enxurrada de medidas que foram e estão sendo tomadas de forma desastrosa, leviana e inconsequente, com ou sem pandemia, mas não o farei. Isso ocorre quando se quer torcer, distorcer, ocultar ou falsear a realidade, o que vem acontecendo cada vez mais nos últimos anos. Há, também, os casos de oportunismo, interesses pessoais suspeitosos e outras artimanhas do tipo. Incorrer nessa irresponsabilidade é flertar com o caos. O ponto é: realidade, verdade e fato não podem ter versões porque são indissociáveis. O fato, ao existir e por existir, já é real e verdadeiro. Esta é uma questão complexa que pede muita atenção, não é fácil compreender de imediato. Tomemos como exemplo os 500 mil mortos na pandemia; o número “500” pode ser questionado, corrigido, o que não muda, porque real e verdadeiro, é o fato gerador - a pandemia -, os mortos são consequência. Um fato pode ser relativo e subjetivo na sua interpretação, mas será sempre real e verdadeiro na sua crueza. A realidade é uma sucessão ininterrupta de fatos, portanto, sempre verdadeira, sem intermediações nem inferências. 


Quem não vê a realidade dessa forma, quem a subestima ou a reescreve em sua própria linguagem, denuncia sua rota de fuga, declara sua imaturidade e incapacidade de lidar com o enredamento do mundo, e de compreender as regras do jogo. Ou navega no maremoto da realidade, ou vai andar de pedalinho na represa, onde estão os medrosos e os insuficientes de si próprios. Outro amigo vive me dizendo que temos realidades diferentes. A ser assim, então são 7 bilhões de realidades diferentes ao mesmo tempo, e o mundo passa a ser o que cada um quer que ele seja!

O conceito de realidade tem sido debatido ao longo da história pelos melhores pensadores, de Platão e Aristóteles a Kant e Spinoza, entre outros. É uma boa conversa para abstrações filosóficas depois do jantar, mas é também uma saída estratégica para quem não quer topar de frente com um muro de concreto. O mundo real. A realidade é uma e única coisa, o que muda é a leitura que cada um faz dela. Em si mesma, ela é imutável e irredutível, como a verdade e o fato.


É fundamental o exercício da reflexão livre de conceitos preestabelecidos, e senso crítico apurado diante daquilo que se apresenta aos olhos. Não há fórmula pronta, não basta “virar a chave” e esperar que tudo mude. É um longo e gradual processo de maturação das estruturas cognitivas a que poucos se dispõem, o que não lhes apetece porque a resposta tem que ser rápida. O que há é um árduo sacrifício intelectual para abdicar das conveniências, dos ranços e matrizes ultrapassadas; é, em certo sentido, reaprender a pensar. Há que se ir além do campo de visão microscópico contido nos limites das percepções e expandi-lo ao tamanho e no compasso do mundo. Do mundo real.


Só compreendendo o real é possível compreender o irreal, e o inverso é tão ou mais verdadeiro. A realidade não deve ser interpretada, vertida, retificada, ela é como o tempo, que não encurta nem estica, ele é imperturbável, nós é que o colocamos na métrica aparente. A realidade é como a Verdade da parábola judaica onde, em estado puro, anda nua pela rua, só não a vê quem não quer encará-la. Uma rosa é uma rosa e não importa o que se pense sobre ela, será sempre uma rosa. La rose est sans pourquoi - a rosa não tem porquê (Silesius, poeta, 1624), ela é o que é porque é. Alberto Caiero, ou Fernando Pessoa, propõe a síntese definitiva: A realidade não precisa de mim”.

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