Obras

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quinta-feira, 23 de julho de 2020

VENTRÍLOUCOS


O título é um trocadilho nada sutil e bastante autoexplicativo, mas a descrição elimina a sutileza: Ventríloquo é aquele que "fala" sem abrir a boca, e o boneco que está sob seu comando no colo é quem conta as histórias, responde perguntas, diz o que o "chefe" faz de conta que não disse. Enquanto não passa de uma simpática brincadeira de salão para a criançada, a festa segue divertida. Porém, quando adultos resolvem brincar de ventriloquia, a festa vira show de horrores. Palavras-chave da conversa de hoje: chefe, comando, boneco, colo, fala. Se eu te conheço, você já chegou ao fim do texto antes do texto chegar ao fim.

Esse teatro de gente grande, na verdade, gente muito pequena, é ruim para o boneco e para quem ouve o boneco, e quanto mais astuto o ventríloquo, maior o dano. Quer exemplos eu dou. Começando de baixo, bem lá de baixo. O guru da autoajuda que, com habilidade e paciência, coloniza a mente (daí "mentor") dos adeptos com retórica e jogo de cena impecáveis. Ao fim e ao cabo, os "bonecos" saem repetindo o "encantamento" sem nenhum questionamento. O rito se reproduz nas pregações onde o público está lá também para ouvir o que quer ouvir, e aí o "pastor do rebanho" logra seu intento quando a louvação é de fazer inveja ao coral dos anjos.

Antes de prosseguir, é fundamental entender Lévi-Strauss quando ele diz que a eficácia de um "encanto" implica na crença desse encanto; primeiro, pela confiança no encantador e na sua capacidade de persuasão, ou sedução; segundo, porque se quer crer que o encanto produz o resultado desejado, e terceiro, porque outros como ele pensam a mesma coisa - a opinião coletiva, ou, se preferir, a câmara de eco, que ratifica o poder do encantador e seu encanto, feitiço, magia ou simplesmente, discurso.


Dessa tripla combinação resulta, ainda segundo Lévi-Strauss, uma espécie de campo de gravitação no seio do qual se definem e se situam as relações entre o encantador (o "chefe") e aqueles a quem ele encanta (os "bonecos"). É uma questão mais psicológica que sociológica. Traduzindo, o feitiço, o encanto, o comando, terá mais efeito se o "boneco" estiver no "colo" do "ventríloquo". Não preciso lembrar que isso vale para qualquer tipo de pregação, narrativa ou ideologia, da mais exótica à mais nefasta. Aqui estamos chegando ao ponto de ebulição.

Estou falando de ambientes como uma torcida de futebol, por exemplo, onde, a um comando, a turba se inflama, ensandece e parte para o confronto e a violência; estou falando de atos públicos em que basta um megafone potente para que, em minutos, a praça se transforme em zona de guerra, ou uma rede social incendiária, um influencer da moda que dita regras quase nunca compatíveis com a razão, a lógica e o bom senso. Em todos estes casos e mais alguns, o "ventrílouco" tem o controle das ações e deixa que os "bonecos" façam o trabalho sujo. Bonecos não pensam, não têm vida própria nem agem segundo sua vontade, apenas mexem a cabeça, agitam braços e pernas e só abrem a boca para repetir o que lhes é mandado dizer.

Por fim, quando um "ventrílouco" exerce grande poder sobre a massa e tem no colo vários bonecos, a situação piora, ainda mais quando ele não tem noção (não?) do que é capaz. Age como uma criança malvada que pega seus soldadinhos de chumbo e joga-os na fogueira, dá desinfetante para ver se o gato sobrevive, esconde o remédio da vovó ou lacra o cofrinho da irmã para ela não comprar jujubas. Qualquer semelhança com quem você conheça não é casual. Nem a analogia é. Tem muito adulto que se comporta de modo inadequado como criança má, fazendo seus bonecos, fantoches ou bonecos de Olinda dançarem conforme os tambores batem. 


Para aprofundar nos aspectos psicopatológicos constituintes de uma índole disruptiva, teríamos que recorrer a Freud e a uma ampla gama de considerações, o que não me cabe fazer, obviamente. Suzana Grunspum, da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, citando o trabalho de Melanie Klein, que deu continuidade aos estudos de Freud nesse particular, ressalta que "Melanie foi uma das primeiras psicanalistas a considerar a agressividade como um fator do mundo interno da criança, e a apontar que os aspectos violentos e destrutivos também fazem parte da constituição da vida maternal desde bebê."


Mesmo dividindo críticas e elogios aos seus estudos, Melanie é reconhecida pela sua arguta observação do universo infantil, a ponto de Lacan chamá-la de "açougueira genial", por explorar as entranhas mais selvagens dos até então "anjinhos" puros e inocentes. Quando esse adulto se recusa a crescer, quando permanece infantilizado e imaturo em suas ações, responsabilidades e pensamentos, quando é incapaz de olhar o mundo em sua complexa totalidade, como é natural em uma criança ainda em processo de formação da personalidade, esse não adulto tenderá a seguir com suas brincadeiras sem medir as consequências. Seguirá julgando-se centro do mundo e aqueles que o rodeiam, bonecos manipuláveis para suas travessuras.

Os "ventríloucos" sempre existiram, é verdade, mas na era da comunicação digital e de massa e com a força das imagens, eles encontraram o paraíso para extravasar suas carências, recalques e falhas de caráter. Há uma inequívoca e permanente tensão pairando no ar, um sentimento incômodo de que algo de ruim está para acontecer, e geralmente acontece, só não se sabe o que, quando e onde. Um ventrílouco, por não ter voz própria nem rosto, e se esconder por trás de um boneco, tem outro nome, e você sabe qual é. Sabe sim.

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