Obras

Obras

sexta-feira, 27 de maio de 2016

   Por que o Fenômeno Óvni seduz tanto?


Antes de entrar no assunto de hoje, um breve e necessário preâmbulo. Meu processo de análise da questão ocorre em duas frentes - o fenômeno e o objeto. O primeiro foi abordado em "Reflexões", a partir de um enfoque multidisciplinar, com fulcro em Mitologia, mas não se encerrou aí. O segundo foi judiciosamente lapidado nos últimos cinco anos e está vindo em "Naus". É dele que trato agora de modo muito resumido, a menor fatia do bolo. Recortes das duas obras estão juntos e misturados para tentar jogar um pouco de luz.

Só mais um detalhe: em meus estudos sobre o fenômeno, incorporo tudo aquilo que dele não faça parte, porque pertencem exclusivamente às ciências humanas e sociais, ao contrário do que pensam entusiastas e ufólogos:  aparições marianas, 'chupa-cabras', Triângulo das Bermudas, deuses astronautas, sagradas escrituras; tradições, pinturas, ruínas, templos, rituais e oralidade primitivas, folclorismo em geral e muito mais. Uma saco de gatos que a Ufologia insiste em botar a mão.

O verbo seduz no título tem razão de ser; poderia usar fascina ou encanta, que têm significados semelhantes. As figuras de sedução (enganar através de um jogo de aparências) preenchem um vazio imediato e constroem, pelo imaginário, a sensação interior de pertencimento no mundo. A sedução tem como ingrediente central a irracionalidade. O fenômeno, como toda figura de sedução, carrega um componente mágico. Nessa mesma linhaLévi-Strauss assinala que a eficácia da magia implica sua crença, mas ela só terá efeito se a plateia estiver inscrita numa mesma malha social. Este tópico tem importância capital, principalmente no conjunto desta reflexão, mas não só.

O primeiro elemento da sedução do fenômeno está na esfera da transcendência, aquilo que está além da compreensão, além do entendimento intelectivo, que não se deixa capturar ou não se revela. Provocando mais que mera curiosidade, enseja à busca permanente de respostas,  mas como o homem não está preparado e não suporta ficar sem elas, inventa uma. Entre elas, o  disco voador é mais uma dessas invenções. É onde as religiões (o sagrado) e as crenças exercem um poder de sedução preponderante. Segundo Morin, o que caracteriza o homo é o fato de ele ser unidual, físico e metafísico, sapiens e demens - produtor de fantasmas, mitos, ideologias, magias, totens - uma vida apartada da vida, imaginária, irreal, às vezes surreal.

O segundo componente  está no campo da ficção, no caso da Ufologia, da ficção científica. Não sei se posso sintetizar com as palavras do sociólogo Jean-Bruno Renard, mas arrisco: "O fenômeno dos discos voadores é o ponto culminante da simbiose entre os temas de ficção científica e as crenças pararreligiosas." A ficção pertence ao plano do imaginário, e, dada a extrema complexidade, recorro a Gilbert Durand, referência mundial nesse campo: "A necessidade da função fantástica reside na faculdade do imaginário de ultrapassar a temporalidade e a morte. A eufemização que ela assegura é o principal motor desse grande processo sócio-antropológico." O discurso de Durand gira em torno da morte e da angústia que causa no homem, e isso tem tudo a ver com o 'disco voador', como uma das muletas já referidas em texto anterior. Costumo dizer que a religião é a porta de entrada da Ufologia; a ficção, a de saída.

O terceiro ingrediente é o mistério. Quem não se deixa "seduzir" pelos filmes de mistério ou por uma boa história mo gênero de Agatha Christie ou Conan Doyle, por exemplo? O mistério seduz porque enfrenta o desconhecido e causa um estranhamento, um duplo sentimento de atração e distanciamento, como acontece com o 'sagrado'. Vale dizer, ao mesmo tempo que guarda reverente distância do objeto, sente por ele incontida atração, como se nunca tivesse havido uma separação: esse caráter simbólico-diabólico é o que estabelece a união e a separação dos contrários (symvallein, ligação; diaballein, disjunção).

Por último, o quarto elemento, o inconsciente. Seria covardia tirar Freud do seu gabinete para me socorrer, mas acho que posso condensar dizendo que o disco voador encanta porque sua face "desconhecida" e "inexplicável" nos revela, ou melhor, revela nosso inconsciente, algo que é absolutamente verdadeiro: o inconsciente é também ele desconhecido e inexplicável. Na composição desse quadro, pode-se concluir que o 'disco voador' seduz porque nos coloca em contato com o transcendente através da imaginação diante do desconhecido si mesmo.

Tentando tornar mais palatável sem parecer reducionista: para burlar a angústia ontológica do desamparo, da insignificância e da solidão no cosmo, o homem fabrica sonhos, fantasias, ilusões e utopias como escudo contra uma realidade que desvela seus medos estruturais, sua indigência e seu não lugar na infinitude do universo.

Estou certo de que apesar deste espaço restrito, é possível ter uma boa noção da densidade daquilo que estou trazendo até você. Embora gratificante, e por sua própria natureza, instigante, esse labirinto de espelhos que é o enigmático ser humano reserva surpreendentes revelações, e saiba que ainda nem dobrei a primeira curva. O que quero dizer é que este blog, e na extensão, meus livros e meus escritos, não passam de modestos candeeiros. É a única coisa que tenho à mão para iluminar o caminho, porque é o único caminho que tenho para iluminar.

______________

DURAND, Gilbert. A Imaginação Simbólica. Edições 70, 1993.
LEGROS, Patrick et al. Sociologia do Imaginário. Sulinas, 2007.
LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia Estrutural. Tempo Brasileiro, 1996.
BECKER, Ernest. A Negação da Morte. Record, 2008.
GALIMBERTI, Umberto. Rastros do Sagrado. Paulus, 2003.
MORIN, Edgar. O Cinema ou o Homem Imaginário. Relógio D'Água, 1997.
LIBÂNIO, João B. As Lógicas da Cidade: o impacto sobre a fé sob o impacto da fé. Loyola, 2002.





Nenhum comentário:

Postar um comentário