Obras

Obras

domingo, 19 de junho de 2016


Olhando  o disco pelo buraco da fechadura


Ao longo dos meus anos de estudos sobre o tema "disco voador", pude observar que a equação central que acirra o debate gira em torno de se acreditar ou não no fato. De um lado, os que creem piamente, tendo ou não qualquer relação direta com o fenômeno. Nessa conta estão ufólogos, contatados e abduzidos, e aqueles que acreditam baseados em divagações que remetem aos escritos bíblicos do tipo "Na cada de meu Pai há muitas moradas" (João:XIV), ou em vagas suposições - "Se a Terra é habitada, por que não milhares de outros planetas?" Na outra ponta estão os que rejeitam sumariamente essa possibilidade, mesmo sem qualquer leitura a respeito. Não aceitam e ponto final, mas não têm argumentos para contrapor aqueles. Já escrevi sobre isso em posts anteriores.

Devo informar aos litigantes - crédulos e céticos - que ambos estão errados em suas posições, e por uma razão em comum: falta de conhecimento sobre o tema que permita travar uma discussão inteligente, sensata e produtiva, especialmente os ufólogos, que julgam conhecer a matéria mas que, em realidade, são tão ignorantes quanto qualquer outro fora da sua trincheira. Ninguém sabe coisa alguma sobre o assunto, que inclui este escriba, obviamente, com a diferença nobremente socrática de que sei que nada sei, mas com esforço sincero para tentar compreender, a partir de outros enfoques.

Se tudo for uma questão de interpretação, e é bem possível que seja, então devemos prestar atenção a Lacan, quando diz que toda interpretação é tão justa e verdadeira, tão obrigatoriamente justa e verdadeira, que não se pode saber se respondem ou não a uma verdade. O que ele quer dizer com isso? Que qualquer um pode ter razão em sua exposição, mas o que determina para onde a verdade se inclin aestá na fundamentação na qual o argumento se assenta e se sustenta: solidez, amplitude e credibilidade formam o tripé que dá força e segurança na formulação do pensamento.

O semiólogo Umberto Eco sempre teve muita preocupação e critério ao tratar da interpretação, tanto para o texto escrito como para a análise de um dado acontecimento, usando a hermenêutica como instrumento de reflexão. É o ponto que nos interessa. A hermenêutica pode ser entendida como a ciência do processo interpretativo. Na prática,  ela é utilizada a partir do momento em que existam formas de comunicação simbólica. Algumas vozes de peso entendem que o cenário contemporâneo é, por excelência, uma "era hermenêutica". Parece desnecessário dizer que a Ufologia, e tudo que lhe diga respeito é, passado o filtro, essencialmente simbólica.

Afirmar a intentio operis - a intenção da obra (ou do fato) é, para Eco, seu propósito fundamental. Está se falando, de certo modo, de traduzir o que está expresso na linguagem e na estrutura do objeto - texto, fala ou evento: "Como provar uma conjectura da intentio operis?  A única maneira é verificá-la a partir do texto enquanto conjunto coerente." Eco ressalta que a ideia, na verdade, vem de S. Agostinho (De Doctrina Christiana): "Qualquer interpretação dada de certa parte de um texto poderá ser admitida se confirmada por - e deverá ser rejeitada se for contrariada por - uma outra parte do mesmo texto."

Estou certo de que o leitor já plantou a semente da mensagem, já entendeu a "moral da história". A rigor, tudo o que temos feito é olhar o fenômeno pelo buraco da fechadura, e quando fazemos isso, obrigatoriamente fechamos um olho, e a visão que temos do outro lado é incompleta, fragmentada, portanto, insuficiente. Não temos a visão do todo, só parte dele. É para isso que somos dotados de dupla visão, para termos a correta e a mais ampla perspectiva do mundo.

Ficamos tão deslumbrados com os mistérios que há do lado de lá, tão seduzidos, iludidos e embriagados com seu fulgor, que nos esquecemos de olhar para dentro de nós, para esse ser tão enigmático quanto indecifrável, pulsante e desejoso de novas descobertas. Sem ter consciência do que somos, nos aventuramos como ontonautas* com temor e desconfiança pelos mares do inconsciente. Tateamos o universo exterior em busca de respostas, sem perceber que elas estão dentro de nós. É o universo que nos revela, e não o contrário. Os mistérios de lá são os mesmos de cá, só precisamos saber fazer as perguntas certas.

* Navegantes de si mesmo
_______________

ECO, Umberto. Os Limites da Interpretação. Perspectiva, 1995.
LACAN, Jacques. O Seminário - livro 1. J. Zahar, 1986.
SARTRE, Jean-Paul. O Ser e o Nada. Vozes, 2005.





Nenhum comentário:

Postar um comentário