Obras

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segunda-feira, 11 de julho de 2016



Um mito moderno? Não, um mito pós-moderno
Parte II: para que serve o mito


Torno interrogação a afirmativa do título: para que serve o mito? Com tantas definições entre muitas que não desembarcaram aqui, uma boa reflexão se faz necessária para entender para que ele serve. Foi nos mitos que Jung encontrou a matéria prima para analisar os mistérios da alma, os eventos anímicos e os arquétipos: "Nos mitos e nos contos de fada, como no sonho, a alma fala de si mesma e os arquétipos se revelam em sua combinação natural como formação, transformação, eterna recriação do sentido eterno".

Para ele, o homem primitivo é de tal subjetividade que seu conhecimento da natureza é essencialmente a linguagem do processo anímico inconsciente.  "Ele simplesmente ignora que a alma contém todas as imagens das quais surgiram os mitos, e que nosso inconsciente é um sujeito atuante e padecente, cujo drama o homem primitivo se encontra analogicamente em todos os fenômenos grandes e pequenos da natureza". Jung desmembra o que Freud resume numa só frase - "O homem não é senhor em sua própria casa".

A mitologia é uma expressão do inconsciente coletivo, diz Jung, e, como tal, a pesquisa se desenrola em torno do indivíduo, pois sempre trata de certas formas representativas complexas, os arquétipos, como ordenadores inconscientes das representações. O mito tem a função de intermediar a relação da vida consciente com  a vida inconsciente, estabelecendo conexões com a memória arquetípica. Para que o mito cumpra essa função, ele precisa ser ritualizado, vivenciado, experienciado. 

Joseph Campbell via o mito como uma forma de expressão necessária e universal dentro do estágio inicial do desenvolvimento intelectual humano, quando acontecimentos inexplicáveis eram atribuídos à intervenção direta dos deuses. O que o mito faz é apontar o transcendente para além do fenômeno. Mircea Eliade, por sua vez, diz que viver o mito representa uma experiência verdadeiramente religiosa, distante da vida cotidiana, profana, ordinária. Essa religiosidade está no fato de ao se reatualizar os eventos fabulosos, assiste-se novamente às obras criadoras dos entes sobrenaturais.

Não poderia faltar o pensamento de Umberto Eco, que, de alguma forma, sempre esteve às voltas com os mitos ao longo de sua obra. Ele definia o mito como uma identificação do objeto com uma somatória de finalidades não muito claras, expressão de um conjunto de tendências, desejos, solicitações e temores particulares candentes do indivíduo. Em outras palavras, um mito para cada um de nós. Ao mesmo tempo, sem contradição, sem conflito e sem dores, vivemos em permanente processo de desmitificação, de diluição do repertório simbólico enraizado no inconsciente.

Não é difícil identificar alguns agentes dessa desmitificação: a tecnologização e a cientificação dominantes (e aceleradas) dos novos tempos, a perda da autêntica religiosidade (não estou falando de religião), a total ausência de introspecção, a paralisação dos mecanismos autorreguladores do pensamento: Não interessa como a coisa funciona, basta que funcione. E rápido. O caminho não é apreciado, chegar ao destino é o que importa. E rápido.

Essa modesta mas rica coletânea de saberes (os ausentes são em maior número) conta ainda com Ernst Cassirer, para quem o mito não se refere, necessariamente, a uma realidade objetiva, podendo ser a uma realidade interna, abstrata, conceitual, emocional. O mito não fala uma linguagem comum, mas por símbolos e metáforas, uma linguagem de correspondências, não de referências. Antes de seguir adiante, quero confessar que não resisti à tentação de destacar em itálico várias dessas passagens, mesmo confiando plenamente na sua capacidade de percepção e apreensão das sutilezas contidas nas palavras. É um recurso válido para redobrar sua atenção.

O último membro desse 'colegiado' é Vicente Ferreira da Silva, e sua voz ecoa com força: "O mito persiste no imaginário dos homens, com suas dúvidas e a confiança cega que eles depositam em algo com poder de orientar suas vidas. Esse poder indefinido não é apenas uma divindade no sentido da mitologia clássica, mas será sempre um poder que transcende o limite físico e o entendimento dos homens". Tomado o conjunto das exposições e a de Jung como guia, a "utilidade" do mito está em agir como elemento mediador e unificante dos conteúdos psíquicos, arquetípicos e simbólicos.

É fundamental ter isso bem claro, e ao amplificar e transportar para o estudo ufológico profundo, a correlação surge inevitável. O método da amplificação no discurso junguiano se caracteriza por promover associações da consciência ante uma determinada imagem, conteúdo ou símbolo, num movimento circular em torno do ponto a ser explorado: "A amplificação consiste simplesmente em estabelecer paralelos". Jung esclarece ainda que "Qualquer estudo simbólico  leva em conta duas vertentes: a individual - as impressões pessoais do sujeito, e a coletiva - o repertório de arquétipos da humanidade."

Para encerrar, mas sem descer a detalhes posto que será discutido adiante mais a fundo, Campbell discorre sobre as quatro funções essenciais do mito: a mística, a cosmológica, a sociológica e a mais importante, segundo ele, a pedagógica. São cenas do próximo capítulo. Fiquei devendo porque o mito é  pós-moderno: essa é a expressão que batiza o período contemporâneo, assim entendido a partir de segunda metade do século 20, exatamente quando, ora veja, a Ufologia ganhou o mundo (veja o post anterior das "coincidências"). Podemos chamar também de neomodernismo, modernidade tardia, hipermodernidade. Se Jung estivesse publicando hoje seu livro, provavelmente empregaria uma dessas terminologias para o título.



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CAILLOIS, Roger. O Mito e o Homem, Edições 70, 2001.
CAMPBELL, Joseph. O Vôo do Pássaro Selvagem. Ensaios sobre
          a universalidade dos mitos Rio de Janeiro. Rosa dos Tempos. 1997.
ECO, Umberto. Apocalípticos e Integrados. Perspectiva, 1970.
ELIADE, Mircea. Aspectos do Mito. Edições 70, 1986.
JUNG. Carl G. Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo. Vozes, 2000.
_______. Símbolos da Transformação. Vozes, 2008.


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