Obras

Obras

domingo, 3 de julho de 2016


Um mito moderno? Não, um mito pós-moderno
Parte I: O que é mito


O tema que você lerá nas próximas semanas não é novo, ao contrário, alguém semeou a ideia há quase 60 anos. Esse alguém foi Carl G. Jung, que, mesmo pondo em risco sua reputação profissional, colocou toda a sua experiência e conhecimento a serviço de uma análise complexa, e por isso mesmo, como confessa, incompleta.  Assim, em 1958, publicou "Um Mito Moderno sobre Coisas Vistas no Céu", no qual faz uma longa imersão no continente psicológico e mítico do fenômeno Óvni.

Desde então, o conhecimento na área cresceu de maneira exponencial, e a revisão do tema mostra que ele não envelheceu, permanece mais atual que nunca. Ao que tudo indica, o sábio de Viena tinha razão: o fenômeno Óvni pode mesmo ser um mito moderno, ou, talvez mais apropriadamente, pós-moderno. Não antecipe conclusões sem antes fazer uma leitura atenta.

Mencionar mito dentro do assunto "disco voador" provoca duas reações opostas: indiferença ou inconformismo. A primeira parte do princípio de que quem fala em mito não sabe o que está dizendo, e a segunda parte do princípio de que quem fala em mito não sabe o que está dizendo. É isso mesmo, ambas as reações, embora contrárias, causam o mesmo sentimento de repúdio e aversão, sendo o primeiro, discreto, o segundo, mais explícito. Faltam informação, reflexão, cautela na hora da de lançar um olhar crítico mais profundo.

Como essa abordagem é mais que polêmica, é espinhosa, ampla, profunda, complexa e atrelada a outros campos, ela será dividida em tantos capítulos quantos forem necessários para proporcionar uma base de entendimento, mesmo sabendo que ficará incompleta, por óbvio. De antemão informo que Jung e suas obras não foram e nem poderiam ser as únicas fontes desse estudo, que não só mantém seu curso como é abastecido permanentemente por outras letras e outras vozes.

A ideia é esclarecer o que é o mito, para que serve, qual ou quais são suas funções, sua estrutura e significado, por que considero o fenômeno um mito e por que pós-moderno. Será um desafio monumental sintetizar o assunto, mas farei um esforço sincero para torná-lo compreensível. Se discordar com o que está sendo exposto, não o faça sem ponderação. Empreenda também um esforço para considerar a real possibilidade de estar diante de um mito em andamento.

Mito, do grego mythós, significa a palavra, o verbo, a explicação do cosmo, do mundo, da vida; sendo polissêmico, permite várias interpretações, mas não admite simplificações. Resumindo no limite do razoável, ele pode ser entendido como uma narrativa de significação simbólica referente a aspectos da condição humana. Importante guardar e assimilar essa definição, ainda que abreviada. Os processos de encantamento e simbolização do mundo passam, obrigatoriamente, por essas narrativas fabulosas.

Vale acrescentar o que Rubem Alves entendia por mito, que dá tons líricos e suaves num primeiro olhar, porém é de uma profundidade singular: "Mitos são histórias que delimitam os contornos de uma grande ausência que mora em nós." Memorize esse enunciado também. Campbell postulava que mito era a busca de sentido da vida, ou, da experiência de estar vivo.Um verniz poético que dá brilho à verdade. Ausência, nostalgia, saudade, vazio, como queira, o mito encerra um desejo, a necessidade de algo inexprimível à razão, a tentativa de voltar às raízes, às nossas origens ou da origem de tudo. Pode ser a também a procura de um conhecimento ou de um acontecimento, ou tudo junto.

O mito, o sonho e a imaginação fazem parte da dimensão simbólica da experiência humana, sendo a expressão transpessoal - universal - daquilo que é representado no nível pessoal do sonho, entendendo-se por sonho, neste caso, como a totalidade do sujeito na esfera de sua existência. O mito repousa na memória arquetípica da humanidade.

Embora Barthes entenda que tudo possa se constituir num mito a partir da fala, "É a história que transforma o real em discurso. É ela e só ela que comanda a vida e a morte da linguagem mítica." O que Barthes define como mito é o instrumento através do qual um produto histórico, humano, é convertido em uma natureza simulada:
Uma prestidigitação inverteu o real, esvaziou-o de história e encheu-o de natureza, retirou às coisas o seu sentido humano, de modo a fazê-las significar uma insignificância humana. A função do mito é evacuar o real: literalmente, o mito é um escoamento incessante, uma hemorragia ou, se se prefere, uma evaporação; em suma, uma ausência sensível.

Para o filósofo Vicente Ferreira da Silva, o mito não é simples palavra ou narrativa literária, mas uma presença real e efetiva dos deuses e da manifestação divina, remetendo a uma série de fatos extra-humanos, uma referência memorizadora e histórica. Não há ambiguidade, contradição ou paradoxo no mito: esse é o seu princípio -transformar a história em natureza, e a natureza não é ambígua nem contraditória e muito menos paradoxal. Observe a representação mítica abaixo, o ouroboro - símbolo da eternidade, contínuo recomeço, totalidade, completude, individuação (Jung), e compare com a figura central na cena de Prometheus acima. O mito continua abrigado, aquecendo, vivo e atuante no inconsciente. Tenha isso em mente.

____________

BARTHES, Roland. Mitologias. Bertrand Brasil, 1993.
CAMPBELL, Joseph. O Poder do Mito. Palas Athena, 1990.
CASSIRER, Ernst. Linguagem e Mito. Perspectiva, 1992.
JUNG, Carl G. Um Mito Moderno sobre Coisas Vistas no Céu. Vozes, 1991.
LÉVI-STRAUSS, Claude. Mito e Significado. Edições 70, 1987.
MORAIS, Régis de (org). As Razões do Mito. Papirus, 1988/
REIS, Carlos. Reflexões sobre uma Mitopoética. LPBooks, 2011.
ROCHA, Everardo. O que é Mito, Brasiliense, 1985.







Nenhum comentário:

Postar um comentário