Obras

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sábado, 30 de julho de 2016


Um mito moderno? Não, um mito pós-moderno
Parte IV: as funções do mito



Mais uma vez começo perguntando: É possível a ressurgência de um mito nos moldes dos antigos? A "era dos mitos" é coisa do passado? Campbell entendia que as informações provenientes de tempos imemoriais têm relação com os temas que sempre deram sustentação à vida humana, construíram civilizações e formaram religiões através dos séculos. Mas eles não "existem desde sempre", não "ocorrem o tempo todo"? Foi o que disseram Campbell e Armstrong no post anterior, lembra? Se eles estiverem certos, e penso que sim, então a resposta pode ser "sim" para a primeira pergunta e "não" para a segunda?

Para outros, os mitos contemporâneos implicam uma atitude substituinte, para preservar a consciência mítica (que na verdade nunca desapareceu, apenas ficou eclipsada pela modernidade científica) e fazer com que os vínculos com o sagrado permaneçam habitando os recônditos da psique. Já tratei disso - o processo de desmitificação, a perda dos conteúdos simbólicos, no capítulo II desta série, lembra disso também? Para conduzir essa tarefa, os mitos assentam-se em quatro funções fundamentais, a saber, conforme Campbell:

Mística (ou metafísica) - Cuida dos mistérios da vida, da maravilha que é o mundo, do nosso deslumbramento com o universo, com o fantástico, o mágico, o inexprimível, o transcendente. "Os mitos abrem o mundo para a dimensão do mistério, para a consciência do mistério que subjaz a todas as formas. Se isso lhe escapa, você não tem uma mitologia".

Cosmológica - é a ligação que a ciência faz com o cosmo através, de novo, com os mistérios desse cosmo, com a origem da vida e do mundo, por extensão, da nossa origem.

Sociológica - a organização do indivíduo, da sociedade, o suporte e a aferição de uma ordem e dos valores sociais, morais e culturais. A importância dessa função se revela nos rumos atuais de nossa civilização, do nosso mundo.

Pedagógica (ou psicológica) - a mais importante, que todo indivíduo precisaria se relacionar, porque indica a vida que se dever levar, em qualquer circunstância. Saber lidar com as concepções de vida e de morte, a finitude e a imortalidade. Face o seu caráter sagrado, o mito produz uma equilibração psíquica.

E você perguntará: O que as funções do mito têm a ver com o fenômeno Óvni? Qual a relação? A função do "mito" ufológico é nos levar a repensar nosso papel no mundo e no universo, inclusive a ver esse mesmo mundo com os olhos do outro; dessa forma, ele no revela, dando à nossa existência seu real significado. Ele faz com que nos entendamos com a história pregressa para saber como construir o futuro. O mito não está no objeto da mensagem, e sim no modo como ele a expressa, isso é o mais importante. Só é possível compreender a função do mito na sociedade contemporânea, se entendermos o significado e o valor que tinha para as sociedades ancestrais, sua força litúrgica, sua configuração religiosa e sua dimensão espiritual.

O fenômeno Óvni igualmente nos estimula pensar sobre a transcendência, os mistérios da vida, desvela nossos medos, faz refletir sobre a origem de tudo; ele é o espelho fiel do que somos e, principalmente, nos aponta o caminho para o que precisamos e deveríamos ser. Mudar, entretanto, é algo que, definitivamente, não faz parte dos planos do homem. Quem se deita à sombra reclama quando o sol muda de lugar.

"A necessidade de significância cósmica é um dado antropológico estrutural diretamente ligado ao terror da aniquilação pela morte. Não queremos admitir que estamos sozinhos, e que sempre nos apoiamos em algo que nos transcende, um sistema de ideias e poderes no qual estamos mergulhados, e que nos sustenta". Essa fala de Becker, já trazida aqui antes, é oportuna para concluir nosso raciocínio. O fenômeno Óvni vem ao encontro desse desejo, pela sua 'materialidade' e proximidade. Fazer "contato" com um ser "superior", em "carne o osso", é uma experiência inexprimível, e o homem jamais abrirá mão dessa possibilidade, ainda que utópica, ainda que quimérica, ainda que irrealizável. Na verdade, já se disse aqui também, nada mais é que a busca da imortalidade.



PS: Se você não entendeu o porquê da ilustração ao alto (Blade Runner), me escreva. Ela é essencialmente mitológica, assim como todo o filme.
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BECKER, Ernest. A Negação da Morte. Record, 1991.
BETTELHEIM, Bruno. A Psicanálise dos Contos de Fadas. Paz & Terra. 1980.
MORIN, Edgar. O Paradigma Perdido: a natureza humana. Publ. Euro-América. 1973.
________. O Homem e a Morte. Imago. 997.
OTTO, Rudolf. O Sagrado. Vozes. 2007.






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