Obras

Obras

sexta-feira, 3 de março de 2017


Conexões desconexas
carlosalbertoreis51@gmail.com


Sei que parece óbvio o que vou dizer e, por favor, não pense que esteja subestimando sua inteligência, até porque sua presença é sinal de que há vida inteligente por aqui. Você sabe o que é conexão desconexa? Grosso modo, é quando se liga um fato a outro sem que haja vínculos entre eles, ou pode ser também pensar uma coisa e falar outra, ou confundir "alhos com bugalhos".

O mais comum é quando assistimos o primeiro capítulo de uma novela ou seriado, o segundo, o terceiro... o quinto... aí perdemos vários seguidos e quando retomamos lá pelo vigésimo episódio, não entendemos mais nada da trama e tentamos ligar os fatos. Começamos a ler um bom livro, mas, por circunstâncias várias, deixamos de lado por um tempo e quando voltamos ao ponto marcado, a memória não reteve os fatos anteriores e temos que retroceder várias páginas ou até começar do zero para refazer as ligações de causa e efeito. Por que estou dizendo isso?

Porque é o que acontece por aqui. Não sei se você é leitor assíduo, se está fazendo as ligações corretas entre os inúmeros temas abordados - porque estão todos ligados como fios imperceptíveis de uma teia. Também não sei se estou sendo claro em muitas dessas passagens, não sei se este blog está atingindo com clareza seus objetivos. É uma autocrítica? Sim, também, mas há uma clara percepção de que tem gente misturando as estações. Será o senso comum que prevalece e interfere na visão dos fatos? Se for, você terá que mudar seus conceitos, porque tudo o que eu não quero é cair na vala do senso comum. Tenho evitado fazer argumentações subjetivas justamente para não margem a interpretações ambíguas. O fato é que a confusão persiste.

Com frequência me perguntam se eu "acredito em vida extraterrestre". Claramente há uma sub-pergunta aí, uma pergunta com segundas intenções, uma pergunta antevendo resposta prévia, querendo saber se, acreditando em vida extraterrestre, acredito também em seres extraterrestres, em "discos voadores". Quem faz a pergunta não está pensando em microrganismos, vida unicelular, essas coisas, mas em vida inteligente. Esse é um exemplo clássico de conexão desconexa. Eu não trabalho com crença, trabalho com lógica e ciência. Vou mais fundo.

A história escreve que certos processos religiosos serviram como duro obstáculo à evolução humana em suas relações com a cultura e a ciência. A religião sempre esteve imbricada à narrativa mítica e o inverso é verdadeiro. Estou falando da origem do pensamento religioso no qual estamos imersos até a medula, por respeito e medo do desconhecido (ou do transcendente). Estou falando do homo religiosus, que traz em si o sentimento da divindade. Essa conversa vai longe. Vou mais fundo ainda.

Vejamos o que diz Laplantine: "A construção da divindade é realizada no imaginário coletivo. Este imaginário caracteriza-se por uma criação limitada e definida pelo sistema religioso e social. À medida que são colocados para a sociedade novos fenômenos e problemas, criam-se novos deuses ou reinterpretam-se as divindades tradicionais. As criações de novos deuses são feitas pelas relações entre as tradições religiosas e socioculturais e a reinterpretação dessas tradições". Já mostrei aqui que este é o pensamento corrente e consensual entre os estudiosos nas ciências sociais.

Para a historiadora das religiões Karen Armstrong, as religiões são construções culturais, históricas, sendo o antropomorfismo o fundamento de qualquer religião, e os deuses refletem as aspirações e ambições humanas. Segundo ela, o pensamento religioso surge a partir deste desejo de ligar-se à divindade, ou religar - religare, religio - o profano ao sagrado, o mundo inferior ao plano superior, o elevado, o "além-terrestre". “Não se deve esquecer que, para o homem religioso, a sacralidade é uma manifestação completa do Ser”, afirma Eliade. A existência da vida extraterrestre inteligente, da sua realidade, é a pedra angular da ufologia, e, neste sentido, ela deixa de ser ufologia para se tornar uma... ufotopia.

Para encerar, esperando que tenha ficado claro o que é uma conexão desconexa: Vida extraterrestre não é a mesma coisa que vida extraterrestre inteligente. O tema foi explorado no post "Vida extraterrestre é possível, inteligente não" (/5/2016). Não se trata apenas de discutir filosofia, ciência ou lógica porque é uma questão religiosa e cultural bem mais complexa, enraizada no espírito humano. "Acreditar" em discos voadores e seres alienígenas subentende crença, e crença não se discute. O que se discute é o conhecimento que podemos ter sobre ela, suas origens, suas causas. A crença acaba onde começa o saber.

Em tempo: Dias atrás, astrônomos anunciaram a descoberta de sete planetas de características semelhantes às da Terra orbitando uma estrela anã-vermelha do tamanho de Júpiter, num sistema planetário distante cerca de 40 anos-luz batizado de Trapist-1. O que me surpreende não é a descoberta em si, mas os cientistas alegarem que pode haver mais! É claro que pode, com certeza haverá mais, muito mais, mas atenção: como sempre acontece nessas horas, aumenta o frenesi pela possibilidade de haver vida por lá. Sim, pode haver, mas vamos manter os pés no chão.

As primeiras informações indicam que as condições parecem favoráveis para que algum tipo de vida possa existir, ou ter existido, inclusive a possibilidade de água em estado líquido. Mas é só o que se tem, o resto é pura especulação. A vida pode ser abundante universo afora, mas não será a vida inteligente afirmada infantilmente pela ufologia nem a acalentada pelos sonhadores. Isso, repito, não é ciência, é ufotopia - projeção ou representação de um ideal não muito bem definido, não exatamente um outro mundo, mas de um possível imaginado. Ufotopia. Semana que vem tem mais.

_________
ARMSTRONG, Karen. Em Nome de Deus: o fundamentalismo no judaísmo, cristianismo e islamismo. Companhia das Letras, 2009.
DELUMEAU, Jean. De Religiões e de Homens. Loyola, 2000.
ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano.  Martins Fontes, 1992.
LAPLANTINE, François; TRINDADE, Liana. O que é imaginário. Brasiliense, 1997.
LÉCY-BRUHL, Lucien. A Mentalidade Primitiva. Paulus, 2008.

Nenhum comentário:

Postar um comentário