Obras

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sexta-feira, 12 de maio de 2017

A pós-verdade é uma verdade


O termo é antigo e já usei aqui algumas vezes: palimpsesto. Do grego palin - de novo, e psao - raspar, referindo-se ao pergaminho que, para ser reutilizado, era raspado para apagar o escrito anterior e dar lugar ao novo. O prefixo palin remete a outros verbetes com sentidos aparentados: palíndromo - leitura inversa; palingenesia - renascimento, regeneração; palinfrasia - repetição de palavras ou frases. Palimpsesto é empregado também em sentido figurado, como uma pintura que recobre outra mais antiga, ou um fato criado para encobrir outro verdadeiro. Na política essa prática é contumaz.

Esse tem sido meu trabalho: seguir apagando criteriosamente letra por letra para desvendar o "texto original". Não dá para condescender. Mas a versão do momento nas discussões chama-se "pós-verdade". É dela que vou falar. Estou de pleno acordo com o conceito de pós-verdade, mas tenho dúvidas se o termo é o mais adequado. Este post foi inspirado pelo amigo Alejandro Agostinelli, da Argentina, através de seu blog - www.factorelblog.com, ao publicar o artigo "Resistir a la posverdad", de Esther Diaz, doutora em Filosofia pela Universidade de Buenos Aires.


Passo direto a uma das fontes: "Pós-verdade parece mais uma expressão de impacto para chamar a atenção de um público saturado de informações e inclinado para a alienação noticiosa. Mas o fato é que estamos diante de um fenômeno que já começou a mudar nossos comportamentos e valores em relação aos conceitos tradicionais de verdade, mentira, honestidade e desonestidade, credibilidade e dúvida".¹ O autor cita a teoria da "cognição preguiçosa", de Daniel Kahneman², referindo-se à tendência das pessoas de ignorar fatos, dados e eventos que obriguem o cérebro a um esforço adicional, ou seja, pensar.

Embora o termo tenha sido usado pela primeira vez nos anos 1990*, o Dicionário Oxford, da universidade homônima, elegeu-o, em 2016, como a "palavra do ano", definindo-a como "um adjetivo que se relaciona ou denota circunstâncias nas quais fatos objetivos têm menos influência em moldar a opinião pública do que apelos à emoção e a crenças pessoais". Não se trata de apologia à mentira, mas de indiferença para com a verdade dos fatos. Não cabe discorrer aqui a vertente filosófica para "verdade".

"Segundo a revista The Economist," prossegue o autor, "o mundo contemporâneo está substituindo os fatos por indícios, percepções por convicções, distorções por vieses. Estamos saindo da dicotomia tradicional entre certo ou errado, bom ou mau, justo ou injusto, fatos ou versões, verdade ou mentira para ingressarmos numa era de avaliações fluidas, terminologias vagas ou juízos baseados mais em sensações do que em evidências. A verossimilhança ganhou mais peso que a comprovação." O emaranhado de interesses que envolvem o conceito de pós-verdade é complexo e demanda tempo, paciência e rigor na depuração e recomposição dos fatos. Como diz Castilho, "Como existe a 'cognição preguiçosa', as convicções passam a ocupar o espaço das evidências e das provas". Trocando em miúdos, a pós-verdade é eufemismo para a pseudoverdade.

Diante da crescente dificuldade para materializar a verdade em razão do tsunami de informações, criam-se pós-verdades, ou factoides, onde repetição e insistência passam a ocupar o assento das evidências. É um pensamento que se verifica na política, na economia, na religião, nas redes sociais... As versões se tornam mais importantes que os fatos, e esse é um dado de realidade. O que chamamos de fatos são, na realidade, representações particulares de cada indivíduo.

Sei que você pescou o resto da história. Sim, a ufotopia é essa usina de pós-verdades, impregnada de mentiras, asneiras, ignorância, desonestidade, irresponsabilidade e tudo o mais. Cada vez mais basta "parecer" para "ser", o que é um erro grosseiro. Ao saber cabe demonstrar que aparência não é essência. 


* O termo foi usado em 1992 pelo dramaturgo sérvio-americano Steve Tesich, segundo Ralph Keyes em The Post Truth Era: Dishonesty and Deception in Contemporary Life,St. Martin’s Press, 2004. 
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¹ Carlos Castilho, "Apertem os cintos: estamos entrando na era da pós-verdade", Observatório da Imprensa, setembro de 2016.
² Daniel Kahneman,  Rápido e Devagar: duas formas de pensar, Objetiva, 2011.

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