Fechando
nosso microgiro pelo mundo iniciado semana passada, trago mais dois
comentários. O historiador português Joaquim Fernandes tem se ocupado
nos últimos anos em fazer uma
análise social, antropológica, histórica e religiosa relacionada ao
nosso tema, e traça um panorama do que ocorre no país irmão.¹
Ele começa dizendo que o interesse do público varia conforme a intensidade das redes sociais, o que nos permite inferir tratar-se de interesse 'por contágio', viral, não natural. Afirma ele que "A credibilidade dos investigadores-entusiastas - fora da academia - é discutível e com raro critério metodológico". Investigadores-entusiastas significa dizer, literalmente, amadores, diletantes, gente inabilitada para tratar o assunto com o necessário estofo científico. A imprensa praticamente não toca no assunto, cabendo às redes sociais o papel difusor. A televisão, quando trata o assunto, o faz sem novidades e sem rigor.
A boa notícia é que a principal vertente investigativa corre sobre análises integradas e visões multidisciplinares, com ênfase nas ciências sociais e humanas, sem descuidar dos dados de natureza física. Estamos falando do corpo docente das universidades e das suas publicações. Fernandes ressalta que "Existe um problema - seja ele apenas social ou mítico-social ou espiritual-mental com elementos exógenos imperceptíveis no estado atual dos acontecimentos. O problema não se resume nem termina no mitema² clássico do estereótipo 'disco voador' ou similares designações conjuntamente em voga na opinião pública." Atenção agora: "Da Nossa Senhora de Fátima aos avatares ETs e aliens há um continuum indelével de apropriações linguísticas, de referentes e da consciência individual e coletiva".
Trocando em miúdos a fala de Fernandes, o que ele está dizendo é que tanto os eventos de natureza mística - aparições marianas em particular - como os casos mais comuns de visualizações e contatos passam, necessariamente, pelo contexto narrativo geográfico, temporal e social, pelos modelos e referências culturais e aspectos arquetípicos. Essa fusão de elementos exige um envolvimento cognitivo que não pode ficar restrito ao "modelo extraterrestre" como hipótese explicativa dominante. Juro que eu não queria ser repetitivo, mas não tenho escolha ao relembrar, por oportuno, que o pesquisador Jacques Vallée já aconselhava, décadas atrás, que, se todas as tentativas de explicação do fenômeno fracassaram seguidamente, é preciso rever e abandonar o conceito de "naves extraterrestres".
De Portugal passamos à França, onde a paisagem não é outra, segundo Pierre Lagrange, Jacques Scornaux, Gilles Durand e
outros estudiosos pertencentes à academia. Para eles, o interesse do
público decaiu bastante e hoje praticamente inexiste, exceto quando um
ou outro caso tem discreta atenção da mídia. Muitos grupos foram
extintos, as instituições oficiais pouco participam,
e, a não ser por alguns poucos pesquisadores mais ortodoxos, o assunto
não desperta mais que curiosidade. Por outro lado, as pesquisas adotaram
uma linha mais abrangente e diversificada, com envolvimento discreto
das universidades. Na França em especial, mas
também em países com Bélgica, Suíça e Itália, esoterismo, ocultismo,
espiritismo e outras crenças perderam fôlego e agonizam nos pequenos
grupos praticantes.
Que prognóstico esse painel nos permite fazer? Antes
de tudo, uma análise cautelosa. A amostra não é retrato do mundo, já o
dissemos, mas há uma clara percepção de total desinteresse
generalizado pelo tema. Percepção subjetiva, sim, mas embasa e atesta
essa leitura um robusto feixe de reflexões e observações, o olhar atento, imparcial, acurado, ajustado permanentemente. O
fato relevante é o alinhamento das propostas de estudo de agrupar
várias disciplinas, principalmente das ciências sociais, trazendo
claridade a questões importantes, diminuindo as zonas de sombra e
silêncio, os pontos cegos e os ruídos de fundo. É exatamente
por essa vereda que conduzo meu trabalho. Isso pode significar que a ufotopia esteja
no ocaso, tal como um dia desapareceram as fadas de jardim, as
aparições de santas, bruxarias e tantas outras lendas populares.
A ufotopia ficou nessa idade primitiva por ser incapaz de pensar fora de si mesma, levando de roldão seus crédulos seguidores. Aqui e ali renitentes tremularão bandeiras puídas e desbotadas, alheios à realidade dos fatos. E o fato é que não há mais lugar para crendices e criaturas bizarras como homem das neves, monstro lacustre, duendes, curupiras, querubins, ciclopes, sereias, zumbis, vampiros, atlantes, lemurianos e homenzinhos verdes de olhos esbugalhados. Os tempos são outros.
¹ E-mail de 14/11/2016
² Mitema - partícula essencial de um mito, imutável e irredutível.
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Jean-Michel Abrassard. Le modèle sociopsychologique du
phénomène OVNI. Presses Universitarires de Louvain, 2016.
Jean.-Bruno Renard. Le merveilleux. CNRS
Editions, 2011.
Pierre Lagrange. Une ethnographie de l’ufologie –
La question du partage entre science et croyance. École des hautes
études en sciences sociales /Université d’Avignon et des pays du Vaucluse,
2009.
_______. A propos des prétendus
aspects psychologiques et sociologiques des témoignages
d’observation d’ovnis. Workshop "Collecte et analyse
des informations
sur les phénomènes aérospatiaux non identifiés". Paris/CNES, 2014.
Joaquim
Fernandes. Moradas Celestes. O imaginário extraterrestre na cultura
portuguesa. Lisboa. Âncora. 2014.
Roberto E. Banchs. Fenómenos Aéreos Inusuales: um
enfoque biopsicosocial. Editorial
Universitária, 1994.
"Isso pode significar que a ufotopia esteja no ocaso, tal como um dia desapareceram as fadas de jardim, as aparições de santas, bruxarias e tantas outras lendas populares.
ResponderExcluirA ufotopia ficou nessa idade primitiva por ser incapaz de pensar fora de si mesma, levando de roldão seus crédulos seguidores. Aqui e ali renitentes tremularão bandeiras puídas e desbotadas, alheios à realidade dos fatos. E o fato é que não há mais lugar para crendices e criaturas bizarras como homem das neves, monstro lacustre, duendes, curupiras, querubins, ciclopes, sereias, zumbis, vampiros, atlantes, lemurianos e homenzinhos verdes de olhos esbugalhados. Os tempos são outros".
Brilhante, seu Reis! Abraço.