No último dia 13 comemorou-se o centenário de Fátima, ou, mais
precisamente, a aparição da "Nossa Senhora" para três crianças
campesinas. Nessa data, todos os anos, milhares acorrem em peregrinações, o
Sumo Pontífice obedece a uma série de ritos pertinentes à ocasião. Procissões,
pagamento de promessas, pedidos e celebrações acontecem em toda parte; matérias
especiais saem na mídia, sempre envoltas por uma aura de "mistério" e
de novas revelações. O evento extrapola em muito o espectro religioso, entrando
nas esferas do social, do cultural, do psicológico, do histórico, do místico e
do mítico, impregnando-se de modo inescapável no imaginário coletivo. Há que se
ater ainda aos aspectos turístico e comercial, que alavancam fortemente a
economia. O maior núcleo hoteleiro do país está em Fátima, e o comércio local
se vale de todo tipo de atrativo para incrementar suas vendas. Nenhuma
novidade.
Não bastasse a comoção popular, a santa trouxe como adereço aquilo que ficou
conhecido como "Os três segredos" - mensagens com tons de presságios,
predições que marcariam de forma indelével o destino da humanidade. Alguns
acreditam que dois deles já teriam se realizado, o terceiro aguarda o
momento de se por a descoberto. Qualquer evento pode ser
interpretado como sendo um dos 'segredos', conforme os interesses em jogo. Por
exemplo, não me parece casual - não é - o primeiro deles se referir (e
coincidir) com o fim da Primeira Guerra. Não tem nada de transcendente nisso,
mas de oportuna conveniência.
Estudos sócio-antropológicos relacionados às chamadas 'aparições
marianas' avaliam como sendo um fenômeno de fim de milênio, e que as mensagens embutidas invariavelmente apresentariam teor apocalíptico. Não é
coincidência, de novo, que seja o mesmo conteúdo das mensagens extraterrestres. Estas bebem naquelas, e nenhuma delas é verdadeira. Não estou dizendo que Fátima seja de
natureza extraterrestre, é óbvio, mas terrestre também não é, pois ela não é real em sua materialidade original. Fátima é, neste sentido, "virtual". Sua origem é, de fato, metafísica.
Para Chiron, os relatos destas supostas aparições, em grande medida, se
potencializam graças à velocidade e o alcance dos veículos de comunicação, em
sua maioria com tintas sensacionalistas e fantasiosas. Nessa mesma linha
ressalta Zinars-Swartaz: "As aparições públicas nas quais um número de
pessoas se reúne para observar um vidente em transe parece ser, ao menos no
contexto da história do cristianismo, um fenômeno peculiar dos dois últimos
séculos".
Deixemos como está. Crenças religiosas são poderosas e, neste caso,
inútil discutir, tanto quanto impossível negar sua importância para a Igreja
Católica e para os cristãos, especialmente os portugueses. Fátima tornou-se o
maior evento religioso de Portugal, e mais, talvez não seja exagero afirmar que
é o próprio "rosto" daquela nação, a sua identidade cultural. Este
blog é lido pelo amigo Joaquim Fernandes, historiador e reconhecido pesquisador
do caso, e ficaremos na expectativa de uma possível nota sua a respeito,
confirmando ou desmentindo este comentário.
É nessa mesma paleta que se matizam anjos, mestres espirituais, 'seres de
luz', aliens e toda uma galeria de criaturas supranaturais
e fenômenos prodigiosos. Bloom assinala que são manifestações datadas de eras
medievais, pertencentes ao pensamento mágico de onde nascem as profecias, as
visões, as viagens extracorpóreas, xamanismo, curandeirismo, oráculos,
misticismo e esoterismo em geral. Deixemos como está. Tudo isto faz parte do
universo imaginário. Percebeu a sutileza do título? Crer ou não crer não é a
questão. A chave para compreender o prodigioso está no conhecimento, no racional,
no pensamento e no julgamento crítico dos fatos.
__________
Sandra L. Zindars-Swartz, Encountering Mary; from La Salette to Medjugorje. New York: Avon Books. 1992. Yves Chiron, Enquête
sur les Apparitions de la Verge. Paris, Perrin/Mame, 1995.
Cecilia L. Mariz, "Aparições da Virgem e o Fim do
Milênio", Ciencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e
Religião. Porto Alegre, ano e, nº 4, p, 35-536, 2002.
Harold Bloom, Presságios do Milênio. Anjos, sonhos e
imortalidade. Objetiva, 1996.
Joaquim Fernandes, História Prodigiosa de Portugal. Mitos e
Maravilhas. Quidnovi, 2012.
__________. Moradas Celestes. O imaginário extraterrestre na
cultura portuguesa. Âncora, 2014.
Carlos Reis, Naus da Ilusão. Multifoco, 2016.
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