Obras

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sexta-feira, 21 de julho de 2017


DE OVO VAZIO NÃO NASCE PASSARINHOO?

A postagem da semana passada provocou manifestação de um leitor, que respondo de pronto para não deixar um intervalo longo entre comentário e resposta. O leitor traz apenas duas citações do livro do psiquiatra José Ângelo Gaiarsa, O Olhar, sem qualquer comentário adicional. Fiquei sem entender seu objetivo, corroborar ou contrapor o que escrevi. Como não tive acesso à obra, também não sei exatamente em que contexto se encontra cada frase: 
Se olharmos para manchas de umidade na parede (como fez Da Vinci), para nuvens no céu ou para manchas do teste de Rorschach, logo começaremos a ver mil formas diferentes onde, em regra, a observação casual registra apenas 'borrões'. Onde quer que o homem fixe o olhar, atento, aí começa a haver mudança. Nossa atenção é inerentemente criativa, e talvez só ela seja.

Manchas, nuvens, borrões, objetos, sombras e relevos de fato induzem a um fenômeno ilusório conhecido por pareidolia, fazendo cm que "vejamos" figuras as mais diversas. Um olhar atento gera mudança, claro, porque a concentração estimula a reflexão (con centrar - convergir os focos de atenção para o centro), e toda reflexão é em si criativa. Esta primeira parte, a meu ver, faz eco a tudo o que tenho escrito aqui. A última frase também é verdadeira - só a reflexão, o pensar, é inerentemente criativo. Cm certeza, porém, em clara contradição à outra frase trazida pelo leitor:  Do vazio criador nascem todas as coisas', dizem os hindus; 'do vácuo quântico gera-se toda a realidade', afirmam os cientistas de vanguarda.  

Ao indagar se procede este "vazio criador" a um amigo graduado em Ciências da Religião e estudioso da filosofia Hindu, respondeu: Segundo algumas perspectivas filosóficas do Hinduísmo, a expressão procede,... mas é filosofia especulativa. Sugeriu, então, que eu pesquisasse a concepção de śunyata, a escola Samkhya, śrşti, pralaya... A exploração desse tema exige imersão completa e demanda um tempo incalculável para absorver todos os conceitos adequadamente. Como de hábito, recorri à academia, à lógica e às minhas leituras atrás de mais esclarecimentos.

Śunyata, no budismo Mahayana, diz respeito a um estado de 'esvaziamento' da consciência, sair da esfera dos sentidos, do mental, do espiritual, do físico, ou seja, do não pensar! Nada muito diferente do que pregam os místicos sobre os 'estados alterados de consciência', ou do cristianismo quando aborda as experiências extáticas ou manifestações do divino. Porém, quando se busca aprofundar o entendimento, invariavelmente o que se tem é um malabarismo retórico tão vazio quanto o vazio que se tenta explicar - argumentum ad ignorantiam, recurso próprio dos místicos com pés de barro. Outra saída estratégica muito comum é, para não se perder em explicações inexplicáveis, alguém dizer que tal estado "escapa à sua compreensão" porque você não tem "sensibilidade refinada" para entender e captar, e que portanto será perda de tempo tentar explicar.

Se Nietzsche tiver razão (Algo pensa em mim), se Freud estiver certo (O homem não é senhor em sua casa) e se as descobertas do Human Brain Project se mostrarem válidas, então o pensamento independe mesmo do homem, um processo autônomo, logo, o tal 'esvaziamento' da consciência não passa de uma ilusão ou falácia. A meditação pode até levar a um estado de quietude, serenidade e equilíbrio, mas só isso, mais nada. Sua mente estará em permanente atividade, queira você ou não. Em outras palavras, nada surge do nada. Vazio criador ou vácuo quântico são meras divagações místicas, conjecturas metafísicas, ilações filosóficas ou, na pior das hipóteses, conversa fiada. A verdade inegável é que há algo "lá", latente, pronto para fazer surgir outro algo. Junte todos os zeros e você não terá nada, acrescente "1" e terá um número, uma medida, um valor. De ovo vazio não nasce passarinho. A trilha seguida pelo Brain Project é descobrir de onde vem o pensamento e o que o produz. Se vai conseguir é outra história.

Vazio criador? Vácuo quântico gerador da realidade? Cuidado com certos cientistas 'de vanguarda', muitos costumam defender ideias que ninguém entende e que nem eles sabem explicar, uma confraria de iniciados no vazio. O pensamento não tem limites, o conhecimento não tem limites, porém, triste sina, somos humanos, e a estupidez também não tem limites, por isso o mundo se afoga em teorias das mais estapafúrdias. Cuidado, não deixe sua inteligência se ajoelhar por estas 'pérolas', que só encantam e seduzem cabeças mais, digamos, tolinhas. 

No momento em que terminava esse post, uma leitora enviou pelas redes sociais a entrevista de um famoso filósofo indiano, tido por muitos um "líder espiritual", falando sobre o sagrado e o pensamento, entre outras coisas. Vale comentar, mas só os primeiros minutos do vídeo; farei uma análise maior na próxima postagem, após assisti-lo na íntegra. De imediato, desconfio de alguém que diz nunca ter tido um conflito sequer na vida, porque, segundo ele, conflito "destrói a mente, a dignidade humana e o sentido de atenção". Meu estupor é indescritível diante de tal despropósito. Será que o sujeito não sabe que o simples ato de pensar por si só já é conflituoso? Aquele que nunca enfrentou um revés, dilema, dúvida ou angústia simplesmente nunca viveu, como nos versos do poeta Francisco Octaviano:

Quem passou pela vida em branca nuvem,
E em plácido repouso adormeceu;
Quem não sentiu o frio da desgraça,
Quem passou pela vida e ão sofreu,
Foi espectro de homem, não foi homem
Só passou pela vida não viveu.

À parte minhas reservas sobre a credibilidade do entrevistado, nenhum conflito é destruidor na essência, muito ao contrário, totalmente edificante, porque é próprio da mente transitar entre dor e prazer, êxito e fracasso, escolhas, decisões. Nenhum ser humano pode almejar o equilíbrio de sua existência sem experimentar essa dualidade! Isso é tão elementar que levanto suspeitas quanto a honestidade do depoente. Ora, o "sentido da atenção"- leia-se concentração, reflexão - é o instrumento por excelência que conduz à (auto)crítica, à (auto)análise e, portanto, ao melhor conhecimento de si mesmo. Perdoe-me a insistência, mas se há algo que destrói a mente é não pensar, é juntar-se à massa mansa, seguir o rebanho ao som da sineta. E ainda estamos no primeiro minuto da entrevista! Fico por aqui. Semana que vem tem mais. Preciso pensar sobre o que vou escrever. Como reflexão final, uma frase do escritor Victor Hugo: "Água que não corre forma um pântano; mente que não pensa forma um tolo".

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