Obras

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sexta-feira, 28 de julho de 2017


NEM LUZ NEM CALOR

Como você deve ter lido na semana passada (se não leu, recomendo que o faça), o assunto "pensamento" continua em pauta. Isso é bom, estaremos todos pensando a respeito. Ao final do post, comentei rapidamente a entrevista do filósofo Krishnamurti com suas opiniões sobre o sagrado e o pensamento. Minha discordância sobre o que ele disse naquela ocasião, meras platitudes, só reforça o distanciamento que sempre tive dele. Antes, porém, uma ressalva necessária: Não foi possível determinar a data do encontro, mas, pelo modelo da transmissão, presumo ter ocorrido no final dos anos 1970, no vigor da Nova Era e das filosofias orientais, da 'meditação transcendental', da 'descoberta interior', do poder da mente e do fortalecimento do misticismo. Da forma como o mundo se nos apresenta hoje, tais comportamentos se mostram deslocados.

Retomo o diálogo com o entrevistador Bernard Levin no ponto em que este pergunta como evitar o conflito interior, que seu interlocutor afirma nunca ter tido: Eu acho que isso realmente vem quando você tem a percepção direta da coisa. E como se consegue isso? pergunta Levin, completando - É como encontrar o Nirvana¹? Não, não, é como encontrar o completamente sagrado, totalmente não contaminado pelo pensamento. Conforme esclarece Rudolf Otto, o sagrado é indizível e inapreensível conceitualmente, logo, irracional; porém, ele tem em si o componente simbólico-diabólico - atrai-afasta, perceptível, racional, condicionado pelo pensamento. A "percepção direta da coisa" será, nesse sentido, subjetiva, portanto ,"contaminada".

Mais adiante, o entrevistado prega que "Devemos estar livres de toda ilusão que o pensamento criou, para vermos algo realmente sagrado". Se o pensamento é o criador de tudo, como saber o que é e o que não é ilusão? O sagrado não seria ele mesmo também uma ilusão? Deixemos isso de lado, não é esse o ponto. 

Quando Levin afirma ser impossível desligar a mente (e ele está certo), Krishnamurti responde com outra pergunta: "Quem é esse que desliga... a mente? Suponho que seja a mente que desliga a si própria". Como é, a mente desconectando-se de si mesma? E ele prossegueQuando nós percebermos que o observador é o observado, o controlador é o controlado, o experimentador é o experimentado, quando realmente nos darmos conta disso, não intelectualmente, não verbalmente, mas profundamente, então essa mesma percepção interrompe isso. De novo argumentum ad ignorantiam? Só porque não sou "iniciado" nessa metafísica rocambolesca significa que não tenho capacidade de entendê-la? Nem sempre o aluno não entender a matéria é culpa dele, você sabe.

A mente, senhores, não é ilógica, não vagueia bêbada pelas vias neurais. A mente não pode conhecer sua natureza, não pode conhecer a si mesma, não pode observar-se, experimentar-se. Essa não é uma verdade relativa. Se alguém aí estiver fazendo curso do tipo "Mind Control", saia correndo, é fria! Julgo importante reproduzir o parágrafo inicial da obra de Jung, que dá a dimensão da complexidade do problema.

"A experiência no campo da psicologia analítica nos tem mostrado abundantemente que o consciente e o inconsciente raramente estão de acordo no que se refere a seus conteúdos e tendências. Esta falta de paralelismo, como nos ensina a experiência, não é meramente acidental ou sem propósito, mas se deve ao fato de que o inconsciente se comporta de maneira compensatória ou complementar em relação à consciência. Podemos inverter a formulação e dizer que a consciência se comporta de maneira compensatória com relação ao inconsciente. A razão desta relação é que: 1) Os conteúdos do inconsciente possuem um valor liminar, de sorte que todos os elementos por demais débeis permanecem no inconsciente: 2) A consciência, devido a suas funções dirigidas, exerce uma inibição (que Freud chama de censura) sobre todo o material incompatível, em consequência do que, este material incompatível mergulha no inconsciente; 3) A consciência é um processo momentâneo de adaptação, ao passo que o inconsciente contém não só todo o material esquecido do passado individual, mas todos os traços funcionais herdados que constituem a estrutura do espírito humano e 4) O inconsciente contém todas as combinações da fantasia que ainda não ultrapassaram a intensidade liminar e, com o correr do tempo e em circunstâncias favoráveis, entrarão no campo luminoso da consciência."

A mente é um "corpo de memórias" que opera a partir das experiências individuais, objetivas ou subjetivas, diretas ou indiretas, liminares ou subliminares. Consciente e inconsciente são interdependentes. O que a consciência despeja no inconsciente, este regurgita de volta uma substância, 'contaminada'. Krishnamurti sustenta argumentos de fundo religioso, e toda religião é essencialmente mística, que por sua vez é crença, e como toda crença, é frágil, diáfana, vulnerável. Tanto uma como outra - religião e mística - são construções do pensamento para fazer frente aos males do mundo e às dores do viver. Não pode haver pensamento 'puro', do mesmo modo que não pode haver mente esvaziada. Um amigo costuma dizer que "são verdades relativas" para encerrar a discussão ou fugir dela. Convém para quem não tem argumentação sólida.

Pelo menos nessa entrevista o Sr. Krishnamurti não disse nada de relevante, ao contrário, ainda afirmou que "A verdade não é um ponto fixo, por isso não pode haver caminho para ela". Levin insistiu: "Mas tem que haver um caminho", e em vez de uma resposta enriquecedora, circunlóquios, de novo um discurso arrevesado de conceitos anódinos. Mentes sem luz não irradiam calor.


¹ Nirvana, segundo Abbagnano, "Extinção das paixões e do desejo de viver, portanto da corrente dos nascimentos, na doutrina budista. Na filosofia ocidental, Schopenhauer adotou essa noção vendo nela a negação da vontade de viver, cuja exigência brota do conhecimento da natureza dolorosa e trágica da vida".
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Nicola Abbagnano, Dicionário de Filosofia. Martins Fontes, 2007.
Rudolf Otto, O Sagrado, Vozes, 2007.
Umberto Galimberti, Rastros do Sagrado, Paulus, 20033.
Carl G. Jung, A Natureza da Psique, Vozes, 2000.

Um comentário:

  1. "Krishnamurti sustenta argumentos de fundo religioso, e toda religião é essencialmente mística, que por sua vez é crença, e como toda crença, é frágil, diáfana, vulnerável. Tanto uma como outra - religião e mística - são construções do pensamento para fazer frente aos males do mundo e às dores do viver. Não pode haver pensamento 'puro', do mesmo modo que não pode haver mente esvaziada. Um amigo costuma dizer que "são verdades relativas" para encerrar a discussão ou fugir dela. Convém para quem não tem argumentação sólida".

    Brilhante, senhor Reis! Concordo, inteira e totalmente! Abaixo, algumas máximas contextuais, para "bagunçar o coreto".

    "O 'pai' da psicanálise Sigmund Freud disse que 'A sabedoria começa com a dúvida'.
    Já que citei o Freud, permita-me citar também outros grandes autores:

    'Um dos paradoxos dolorosos do nosso tempo reside no fato de serem os estúpidos os que têm a certeza, enquanto os que possuem imaginação e inteligência se debatem em dúvidas e indecisões [Bertrand Russell];
    A dúvida é o princípio da sabedoria [Aristóteles];
    A dúvida é desagradável, mas a certeza é ridícula" [Voltaire]'".

    https://pt.linkedin.com/pulse/tem-certeza-claro-que-n%C3%A3o-s%C3%B3-os-idiotas-achiles-rodrigues.

    Abraço.

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