Obras

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sexta-feira, 27 de julho de 2018

FALTA VERGONHA NA CARA
Specchio. Alumínio, 2017.
Cortesia Matteo Pugliese. Milano, Itália.



Conheço muitos que não fizeram,
quando podiam,
porque não quiseram,
quando deviam.
Rabelais


Algum tempo atrás escrevi aqui a respeito de um encontro de ufologia na cidade de Varginha. Planejado desde meados de 2017 para ocorrer em janeiro de 2018, foi adiado para julho e agora remarcado para janeiro do próximo ano. Não sei o motivo do primeiro adiamento, mas o segundo foi por falta de quórum, ou seja, não atingiu o mínimo de público necessário sequer para cobrir os custos do investimento. É esperar para ver se de fato irá se realizar na nova data a. Tenho dúvidas.

Convenhamos que preparar um congresso internacional para meia dúzia de interessados é armar um retumbante fracasso. Há uma explicação para a ausência de público? Os organizadores não são marinheiros de primeira viagem, têm experiência, conhecem bem os caminhos, já tiveram êxitos anteriores. Das vezes em que participei nada os desabona. O que houve? Creio que a resposta esteja no esgotamento do tema, seja 'disco voador' ou o 'caso Varginha'. Água parada não move moinho, diz um antigo provérbio português. Quem não tem nada de inédito ou interessante a dizer, é melhor ficar de boca fechada. Não subestime a capacidade de compreensão do outro. Na verdade, jamais desconsidere o outro.  O que “Varginha” poderia apresentar de novidade vinte anos depois que já não tenha sido esmiuçado à exaustão? Nada. A propósito, deixei bem clara minha convicção de que este caso de ufológico não tem nada no post “Delírios de uma tarde de verão”.

Água parada não move moinho! Vira charco, é podre e cheira mal. O banquete acabou faz tempo. A insistência infantil e no mais das vezes patética para “provar a existência do disco voador” patrocina a demência.  Faltou maturidade, tato, inteligência,  sensatez, sensibilidade, honestidade e escrúpulos na iniciativa do encontro. Falta, principalmente, vergonha na cara. Mal comparando, é como se num congresso médico alguém apresentasse sistematicamente o mesmo tema ultrapassado, algo do tipo “Novas técnicas para a lobotomia”. Com exceção do séquito fiel, tudo indica que o público em geral está cansado de ouvir a sempre enfadonha ladainha das teorias conspiratórias para ocultar a verdade e outras tolices iguais. É um desperdício pautar nossa breve existência pela mediocridade. É como criança brincando de roda, gira gira gira sempre no mesmo lugar... Quanto tempo perdido, quanta imobilidade, quanta conformidade, que falta de perspectiva - muito sertão nenhuma vereda! Quem não sabe para onde ir, qualquer caminho serve, mas pobre daquele que não tem um caminho, esse não vai a lugar algum! Vai ficar lá, bem no meio do nada.

Volto a dizer que quanto mais persiste a necessidade de explicação, quanto mais se tenta provar qualquer coisa, mais o descrédito aumenta. Volto a dizer também que não se pode querer resultados diferentes fazendo sempre a mesma coisa, isso é sintoma de esquizofrenia. Essa turma não aprendeu ou não quer aprender a lição. Há uma notória fratura com a realidade, com o mundo e com a verdade. Na maioria dos casos, não há ortopedia que conserte.

Tive a curiosidade de ver o programa do congresso. Enquanto alguns temas pararam lá nos anos 70, outros são de estarrecer, o que não surpreende: “Bem-vindo ao novo mundo: a exopolítica e o exodireito”. Como é que é, exopolítica e exodireito? Alguém pretende falar de política e direito do extraterrestre? “Agenda alienígena”, “Viagens interestelares: o papel das ciências físicas e das tecnologias quânticas”. Um conteúdo dessa ordem caracteriza um exército de Brancaleone constituído de patafísicos¹  nefelibatas² vocacionados para a mais explícita empulhação. Até quando?

A plateia pode até ser leiga em direito, física e tecnologia quântica seja lá o que isso for, mas não é estúpida a ponto de cair nessa canalhice intelectual como querem os palestrantes. Isso talvez explique o inexpressivo número de inscritos. Mais uma vez reforço o dever da responsabilidade e da ética nas relações sociais. Mais uma vez digo que essas vozes não têm um rosto, logo, não há autoria. Mais uma vez fica patente que esses princípios fundamentais não estão sendo respeitados. E por quê? Porque faltam caráter, atitude, decência e vergonha na cara. Até quando?

Um leitor informou que na Europa os registros sobre Óvnis caíram drasticamente nos últimos 20, 30 anos. A literatura, que antes ocupava um setor próprio nas livrarias, está confinada agora às prateleiras do esoterismo. Para Peter Hatttwig e Werner Walter, pesquisadores alemães, o boom sobre Ufos é coisa do passado: "As explicações são muito mais racionais", afirma Werner, acentuando que o sensacionalismo em torno dos Ets alimentou expectativas que não se confirmaram, daí o crescente desinteresse. O jornal Le Monde Diplomatique, na edição de 2007 (nas raras vezes em que abre espaço para o tema), em matéria assinada por Luc Bronner, informava que os ufólogos têm nostalgia da "idade do ouro" dos Óvnis, que começou por volta dos anos 1950 e acabou na década de 180. Nostalgia é mesmo a melhor definição para "saudade dos bons tempos" de que falamos aqui recentemente.

O tiro saiu pela culatra! Segundo Luc, os filmes e séries de TV na linha "Arquivo X" estimularam a opinião pública a considerar estes eventos como ficção. Uma parcela significativa da população acredita que são os "delírios" dos ufólogos, em especial aqueles que afirmam terem sido sequestrados, que prejudicam a imagem do movimento (Certains y voient la conséquence de films et de séries télévisées comme "X-Files", qui incitent l'opinion à considérer ces événements sous le seul angle de la fiction. D'autres estiment que ce sont les "délires" des ufologues les plus extrêmes, notamment ceux qui affirment avoir été enlevés, qui ont brouillé l'image du mouvement). Para atualizar esses dados, entrei em contato com amigos pesquisadores franceses e eles confirmaram o que já se sabia: no início de julho ocorreu o encontro UFO PARIS em que um dos conferencistas apresentou casuística de...1965! O cenário hoje é o mesmo - nostalgia. A ufologia definitivamente perdeu espaço para coisas mais importantes, que é o caminho sem volta lógico e natural, enquanto no Brasil o atraso, além de crônico, é gigantesco.

A revista Lumiéres dans la Nuit, uma espécie de porta-voz da ufologia francesa desde os anos 60, viu o número de assinantes despencar de 5.000 para 800 nos últimos anos, com tendência de queda. Surpreende que ainda esteja ativa. Como parâmetro, a tradicional revista brasileira Planeta há décadas deixou de publicar artigos de ufologia. Para uma relevante maioria da população europeia, a ufologia deixou de ser assunto sério para se tornar simples entretenimento. Em 2000, o Centre National d'Études Spatiales - CNES (o equivalente à NASA) encerrou as atividades do grupo interno de estudos sobre Óvnis devido a críticas sobre a seriedade do trabalho. Foi reativado em fins de 2007 com a tarefa de monitorar "fenômenos aeroespaciais não identificados". O que mais posso dizer?

Quanto a imagem specchio - espelho, não foi por acaso. É fundamental acrescentar um ponto complementar aos textos anteriores, porque está ligado organicamente com o de hoje. Reporto ao alferes Jacobina no conto "O Espelho", de Machado de Assis, no qual ele só se vê refletido quando vestido a roupa referência - seu uniforme militar, ou seja, o espelho é uma espécie de máscara: sem a farda, Jacobina não é nada, não é ninguém, não tem rosto, não tem identidade, volta a ser o invisível Joãozinho. Importava-lhe como os outros o viam - Senhor Alferes. A fusão do 'papel social' com a autoimagem conduz à dimensão especular inerente tanto do olhar do outro como o reflexo realizado pelo 'duplo espelho'.

O espelho sustenta a persona, que passa a ter 'vida', 'corpo', na verdade, um negativo do real - aquilo que não é, um autorretrato às avessas. Sem o olhar do outro, o alferes deixa de sê-lo. se esfumaça, torna-se imagem difusa, vaga, esgarçada, um fantasma, sombra da sombra, corpo 'incorpóreo'. Jacobina não se encontra mais, cai em solidão, no vazio da existência, sua "segunda alma" não o completa, ele perde a inteireza, criatura mutilada. É o eterno conflito entre ser e parecer ser, entre o 
statu e a 'nudez' do ente. O pensador russo Mikhail Bakhtin dizia que a consciência é construída pela polifonia social do meio em que o indivíduo está inserido.

O teólogo e crítico social dinamarquês Søren Kierkegaard é certeiro: 
Podes imaginar algo mais terrível que ver decompor-se tua natureza em uma multidão, tornar-te múltiplo, uma legião, como os desgraçados seres demoníacos, e assim perder o mais íntimo e mais sagrado de um homem - a potência ordenadora da personalidade?


¹ PatafísicaContração do grego epì tà metà tà phusiká – o que está além da (meta)física), ou ciência das soluções imaginárias.
² Nefelibata: Que vive nas nuvens.

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https://www.lemonde.fr/societe/article/2005/10/18/les-ufologues-ont-la-nostalgie-de-l-age-d-or-des-ovnis_700516_3224.html


2 comentários:

  1. A derrocada da ufologia está magistralmente registrada no seu fabuloso, delicioso,franco e contundente texto, sr. Reis! Do jeito que a coisa vai, certos ufólogos acabarão exilados em Marte...
    Um abraço.

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  2. Inacreditável que ainda tentem fazer reuniões dessa natureza... Acho que convenções sobre star trek tem mais realidade... Rs

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