Obras

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sexta-feira, 14 de setembro de 2018


ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA

- Por que meus olhos doem?
- Porque você nunca os usou.
(Neo e Morfeu, Matrix)


Episódio 1: Experiente fotógrafo da imprensa nos informa ter flagrado estranho objeto luminescente, ao entardecer, em São Paulo. Durante um mês, mossa equipe analisa cuidadosamente as circunstâncias da foto. A conclusão é que se tratou de um por-do-sol sob condições climáticas incomuns, produzindo um efeito brilhante  extraordinário. Desnecessário dizer que o profissional recebeu esse resultado cuspindo marimbondos.

Episódio 2: Empresário filma por razoável tempo vários objetos luminosos fazendo evoluções em torno de uma "nave-mãe", até tudo se apagar em meio à neblina noturna. Acionado, nosso grupo investigou durante semanas até concluir que era um balão carregando uma armação (cangalha) repleta de lanternas feitas com velas formando uma figura, velas que iam se soltando pelo vento e apagando pelo consumo. O resultado era um gracioso bailado de pontos tremeluzentes qual pirilampos  rodopiando em volta da "mecha-mãe". Desnecessário dizer que o executivo recebeu essa informação cuspindo marimbondos.

Episódio 3: Jovem envia pelo whatsapp uma foto tirada à tarde dizendo tratar-se de "três pontos luminosos como estrelas deslocando-se a uma velocidade impressionante". A imagem não é nítida e mal se identifica qualquer coisa. Após algumas perguntas básicas de praxe, ficou claro que ele não presenciou o movimento das "luzes": ele bateu a foto, olhou para o chão pois descia por uma calçada íngreme, com degraus, e ao olhar novamente para os "objetos", eles não estavam mais lá, o que não configura deslocamento. Sem mais elementos, disse-lhe que não havia como esclarecer e que poderia ter sido o reflexo de uma aeronave a grande altitude, ou uma ilusão ótica momentânea. Sua resposta foi um lacônico OK, dando a conversa por encerrada, talvez com certo desdém. Não sei se cuspiu marimbondos. 

Eu poderia descrever dezenas de casos semelhantes que acontecem o tempo todo. Os exemplos mostram a grande frustração dos personagens, pois estavam certos de que a palavra de um "especialista" daria aval às suas expectativas. Todos eles, e todos os que já passaram por situações semelhantes, esperavam que suas experiências fossem o que eles queriam que elas fossem: testemunhas da presença de um "disco voador". Como a chancela não aconteceu, e nem poderia, a frustração deu lugar ao inconformismo. Não só não aceitaram o veredicto como seguiram suas vidas acreditando firmemente terem filmado e fotografado um disco voador. Em se tratando de leigos, é natural e compreensível, afinal eles precisam acreditar em algo seja lá o que for. Todos querem sinceridade, a verdade.  mas recusam-na quando ela aparece.

Porém, constato com pesar que, entre os colegas, e falo de gente bem informada, tarimbada, experiente, há uma notória resistência em acolher dados irrefutáveis à luz dos múltiplos saberes envolvidos. Não basta só informação, é preciso conhecimento; enquanto aquela é cumulativa, este é seletivo; enquanto aquela é ferramenta, este é resultado, enquanto aquela é esquecível, este é perene. Eu arriscaria dizer, mais que resistência, relutância ou rejeição, subjaz um medo em reavaliar e reposicionar conceitos e valores em relação ao tema, e vou além, vejo também um profundo desconforto em assumir uma mudança de postura. Parece haver uma acomodação ou desinteresse em procurar o saber fora da ufologia, em explorar novos caminhos, debater ideias, discutir o contraditório. É o chamado viés de confirmação - girar o conhecimento num único eixo de modo a sempre ratificar suas convicções. Pergunto: É acomodação ou algo mais grave como preguiça, renúncia ou covardia?

Tenho a sensação de que a maioria segue o lema do "deixa como está para ver como é que fica". Poucos estão razoavelmente alinhados com os novos tempos. Não seria errado afirmar que a vaidade e o narcisismo estariam por trás deste comportamento, uma vez que muitos não recusam convites a entrevistas e reportagens para falar o que a mídia e o público querem ouvir, mas não para o que precisam ouvir. Há, também, diga-se, o desejo e a necessidade de preservar a imagem de pesquisador "sério", e, reforçando o que já foi dito aqui, de manter, através da ufologia a sua referência identitária, sem a qual não conseguem se encontrar e encontrar o seu lugar no mundo. É preciso muita coragem para despir-se desse fardão puído e descolorido. São, todos, Senhor Alferes Jacobina do conto machadiano., já mencionado aqui.

Quero deixar bem claro que não estou fazendo críticas nem impondo a minha opinião, porque respeito todas. Um ponto de vista é a vista a partir de um ponto (Boff). O que faço é trazer vários destes pontos para compor um painel coerente e sustentável, à semelhança do passatempo de "unir os pontos"para formar uma figura. Temos aqui as duas faces da mesma moeda: De um lado, os leigos, de quem não se pode querer que conheçam o assunto, que saibam distinguir os fatos e não se iludam com as aparências. Neste caso, meu papel é apenas o de esclarecer com base na minha experiência, pouco importando se a resposta agrada ou não.

Do outro lado da moeda, os amigos pesquisadores, a quem desejo sinceramente que tenham  lucidez para entender que o cenário mudou, que a leitura e a interpretação do mundo mudaram e que eles não podem continuar sendo os mesmos, na contramão das transformações. Adquirir novos conhecimentos não é só uma prioridade, um desafio, virtude, esforço ou querer, é, acima de tudo, chave para melhor compreensão de si e dos outros. Neste caso, sendo o blog um divulgador de saberes, muito modestamente seu papel é parecido ao de uma curadoria, do latim cur - zelar, manter a vitalidade; um curso - caminho, direção, norte; e curioso - observar, ou seja, estudar, selecionar e oferecer o que há de melhor e mais importante a ser transmitido. Abrir os olhos pode doer, não abrir é mortal.

Para justificar e valorizar a escolha do título, referência à obra de Saramago, junte-se as ideias do autor com as de Bauman e agora, também, de Theodore Dalrympole. "Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara" (Saramago). Obviamente, 'repara' é preste atenção, observe novamente, note bem, mas podemos interpretar também como restaure, refaça, recupere. Restaure o bom senso onde ele não está, recupere a clareza onde existe a obscuridade, refaça o caminho, se desviado. Eis a nossa responsabilidade, "a de ter olhos  quando outros os perderam". Bauman não cansava de criticar a liquidez das nossas relações sociais, agora mais que nunca sócio-virtuais, ancoradas na insensibilidade e no narcisismo. As respostas de curto prazo inibem as de longo prazo, marcadas pelas crises educacional e informacional, pela falta de critérios e pela urgência no preenchimento de uma existência esvaziada de sentido de uma sociedade emocionalmente desequilibrada:
Não se trata mais do sonho do grande Giovanni Pico della Mirandola, de um indivíduo humano capaz de moldar a si mesmo. O paradoxo é que agora o indivíduo é moldado pela globalização e suas forças anônimas (Bauman).
Já o psiquiatra e crítico social britânico Theodore Dalrympole desfila - e destila - em tom sóbrio a sua percepção do mundo, onde os títulos de seus livros mostram a que veio, como, por exemplo, Nossa cultura... ou o que restou dela, Podres de Mimados  e Qualquer Coisa Serve (Este título, no original, é um direto no queixo: Anything Goes: the death of honesty - Vale Tudo: A morte da honestidade)No conjunto da obra, Dalrympole denuncia a falta de parâmetros morais, éticos e estéticos como resultado de uma total penúria intelectual, do "sentimentalismo tóxico", do infantilismo, da ruína da cultura e da irresponsabilidade com os deveres. Não é pouca coisa. É um chavão, eu sei, mas seu olhar é cirúrgico, a crítica pega na veia e ele não se preocupa em estancar a hemorragia. Você vai sangrar até absorver a concretude da sua experiência e o amargor do diagnóstico. Um autor indispensável e uma obra não escrita para fracos.

Já escrevi demais por hoje. Para resumir, este autor reforça o pensamento geral de que, dada a volatilidade do mundo contemporâneo, a vulnerabilidade e efemeridade das relações e voracidade das respostas, "qualquer coisa serve". Para quem não vê, logo, não repara, qualquer coisa serve. São tantas as perguntas que qualquer resposta será melhor que nenhuma. "É a verdade que nos liberta e não um mito conveniente". Não se cura câncer com analgésico, água benta ou florais de Bach. A vida não é qualquer coisa. 

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BAUMAN, Z; DONSKIS, L. Cegueira Moral. Zahar, 2014.
DALRYMPOLE, T. Qualquer Coisa Serve. É Realizações, 2017.

Um comentário:

  1. "Já escrevi demais por hoje. Para resumir, este autor reforça o pensamento geral de que, dada a volatilidade do mundo contemporâneo, a vulnerabilidade e efemeridade das relações e a voracidade das respostas, "qualquer coisa serve". Para quem não vê, logo, não repara, qualquer coisa serve. São tantas as perguntas que qualquer resposta será melhor que nenhuma. "É a verdade que nos liberta e não um mito conveniente". Não se cura câncer com analgésico, água benta ou florais de Bach. A vida não é qualquer coisa".

    Grande, Sr. Reis!

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