Obras

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sexta-feira, 21 de setembro de 2018

O PESCADOR D
E ILUSÕES

Muitos enfraquecem para que um se fortaleça.
Étienne de la Boétie
Discurso da Servidão Voluntária



Semana passada uma revista de circulação nacional deu destaque de capa matéria sobre Sri Prem Baba*, codinome "espiritual" de Janderson de Oliveira, o guru sob holofotes no palco do ezoterismo tupiniquim (z demarca a farsa). O vilão da vez não vingaria não fosse o incenso barato dos desvalidos e dos tontos de sempre - políticos, artistas, "intelectuais", celebridades... Fumacê rima com namastê, e o dano cerebral é o mesmo.

Estou constantemente apontando os farsantes que usam e abusam da fé alheia com suas atividades duvidosas, sempre prontos como ratos à espera o melhor momento de fincar os dentes sujos no pescoço alheio. Nada impede de pensarmos estar diante de um "endoterismo" caviloso. Justamente sobre este assunto, aliás, posso adiantar que um texto pronto - O abraço da Quimera - que deu lugar a este pela matéria da revista que veio a calhar. "O abraço..." virá na semana seguinte. Babacas babam pelo Baba não é de hoje. Ao disparar minhas críticas fora da ufotopia (astrologia, espiritismo, profetas, canalizações, terapia quântica, vidas passadas, anjos, viagem astral, oráculos em geral e místicos de fundo de quintal), alguns se arrepiam, outros pedem cautela, mas a maioria se indigna por ver maculado o santo nome de seus mentores Não vou me omitir nem me esconder na hora de marcar a ferro quente essa turma de velhacos.

Esse é o estereótipo do 'mestre', com pequenas variações: oratória caprichada, simpático, afável, sorriso largo, voz pausada em tom baixo; aspecto respeitável quase paternal, gestos estudados, barba e cabelos longos grisalhos cuidadosamente cultivados sugerindo 'bagagem existencial', túnica longa despojada; exalam aromas e exercem uma liturgia cênica de impacto. Tudo calculado. De forma bem dissimulada, sobram empáfia e vaidade sob a aparência de humildade, arrogância sob as vestes de uma pretensa sabedoria, incisiva sedução sob o verniz de uma retórica fluente e amaciante. Quero lembrar a etimologia de sedução: do latim seducoseducio, seducere - afastar, separar. apartar do caminho, enganar através de um jogo de aparências. Toda sedução contém laivos de magia, que só terá efeito se o seduzido estiver inserido no tecido social - a rede simbólica ao qual pertence. Lévi-Strauss dizia que a eficácia da magia implica na crença da magia.

Lembro-me, porque vi de perto, quando, no início dos anos 1990, um postulante a guru meio enrustido anunciava seu projeto mirabolante de sociedade alternativa em comunidades rurais conhecido como Projeto Alvorada. Dado o fracasso, renomeou Projeto Aurora. Com perfil talhado para a 'missão', envolveu muitos com propostas de uma vida pautada na "nova era"- agricultura familiar atóxica, alimentação natural, terapias alternativas, energia sustentável, meditação, medicina homeopática e derivadas e todo aquele combo plasmado na Era de Aquário. Fundou sua própria doutrina, Amasofia, a "cosmovisão holística" e, obedecendo a cartilha, também adotou um nome espiritual porque "pega bem" e combina com o figurino, Ben Daijih. O detalhe é que Luiz "Ben Daijih" Gonzaga divulga seus ensinamentos, 'revelações', mensagens e livros sob orientação mediúnica de... extraterrestres!

Muitos conhecem outros célebres gurus forjados no caldeirão esotérico da New Age como Sai Baba, Ravi Shankar e Rajneesh, por exemplo. Alguns levam os adjetivos yogi, mestre, líder espiritual, venerável, sua santidade e outros, para dar uma aura (sem ironia) de 'pureza' e elevação moral, quando não passam de "espiritualistas carnívoros". Não entendeu? Explico: Exortam o "Eu Maior", pregam amor e o "cainho do coração", mas estão de olho é na carne do baixo ventre e em outros 'filés' - sexo, luxo, ouro, ostentação, carros, jóias, terras, imóveis e grana, muita grana em bancos oficiais e não oficiais.

Quando desmascarados ou acusados de conduta amoral ou improbidade, sem perder a serenidade se dizem "vítimas" de inveja, deslealdade, incompreensão e rancor daqueles que julgavam devotos. Foi exatamente esse o teor da mensagem** gravada pelo guru brasileiro, "filho do universo, irmão das estrelas", "em meio à floresta que é a minha raiz" (forçou a barra o paulistano da periferia). Embora diga que ficou "vários dias em silêncio, meditando, fragilizado, mergulhado na escuridão para entender o que estava acontecendo", a gravação foi feita no mesmo dia em que a revista chegou às bancas, o que faz supor ter sido feita logo após uma reunião com sua assessoria de comunicação. Discurso vazio e evasivo, com obviedades, tergiversação, linguagem banal e raciocínio precário, redundante, entonação ensaiada, palavras escolhidas, performance pífia nada condizente para um 'líder espiritual'; transbordam hipocrisia e falsidade; falacioso, sem compromisso com a verdade, sem credibilidade. Limitou-se a acusar seus acusadores,  embromou, enrolou, não explicou e piorou o que já estava ruim. Não se esperaria outra coisa de alguém tão fraco, primário, limitado, imaturo, inseguro e vulnerável.


Ilustração: Angeli

Só na Índia, que concentra o maior número de líderes espirituais per capita, a roda da fortuna dos gurus movimenta uma máquina de poder extensiva e expansiva milionária, da ordem de centenas de milhões de dólares anualmente, moldando um portentoso império: Ashram, a casa dos gurus hindus, costuma ser construída em um terreno com centenas de hectares; escolas, unidades médicas, emissoras de rádio e TV; grandes lojas (nada de modéstia) atendem milhares de fiéis diariamente com um portfólio de produtos impressionante, de sabonetes a livros, roupas, acessórios, decoração, tudo o que você pensar. Espiritualidade custa caro, por isso são "sábios".

Já vai longe o dia em que o beatle George Harrison deu fama planetária a outro guru, Maharishi Mahesh Yogi, que gerou um apostolado gigantesco, servidores e professores de 'meditação transcendental' por dezenas de países. Todos estão muito bem amparados por astutas assessorias de comunicação, marketing, financeira e jurídica e um graúdo contingente de funcionários. Sobre a ação desses 'veneráveis',  escreve Magnani:
Só se sustentam com base num público consumidor sem capacidade de discriminação e por isso mesmo sujeito ao fascínio das soluções rápidas - a possibilidade de alguma experiência espiritual indizível depois de umas poucas sessões de meditação, ou a tão sonhada harmonia interior após o encontro, sem maiores sobressaltos, com o “eu mais profundo”...
O cientista social Gad Saad engrossa o coro dos analistas:
Os "mercadores de esperança" são excepcionalmente bem-sucedidos porque atendem a nossas inseguranças fundamentais baseadas no darwinismo. A religião nos concede "imortalidade", os curandeiros médicos "resolvem" provações de saúde intratáveis e os gurus da auto-ajuda nos oferecem "prescrições" para todos os desafios inimagináveis da vida.
O sociólogo Dipankar Gupta há muito acompanha a trajetória dos gurus e afirma que uma das razões da crescente influência dos gurus é que eles preenchem o vazio deixado pelas instituições, oferecendo assistência social, educação e atendimento médico à população, carente ou não. Gupta acentua que opulência não coaduna com o caráter espiritual. Por outro lado, verdade seja dita, há coerência nesse ramo porque as espécies se reconhecem e se encontram. Quem, nos dias de hoje, ainda se deixa iludir ou é fisgado pelos pescadores de túnica branca, não aprendeu a lição porque tem mentalidade muito aquém da mediana. É inadmissível tamanha ignorância quando a informação está disponível na ponta dos dedos. Não se trata mais de um ciclo cultural histórico ou modismo atemporal de um sistema de crenças e fé pessoal, e sim de um processo sócio antropológico mais complexo. Gupta e Saad tocam na ferida quando dizem que os "mercadores de esperança atendem a nossas inseguranças fundamentais"..."porque preenchem o vazio deixado pelas instituições." Não é isso que você lê o tempo todo aqui?

Para Leila Amaral, a Nova Era mostra a emergência de uma "cultura religiosa errante", porosa, performática, festiva, efêmera, sem rígidos marcos doutrinários; padece de uma linguagem teológica, retirando o sagrado do seu território e esvaziando-o de sua substância. Tudo não passa de uma "religiosidade caleidoscópica", um "sincretismo heterodoxo". Encerro com Magnani e sua visão da missa esotérica e seus devotos:
Não se pode generalizar. Há quem participe no universo do neo-esoterismo apenas por acreditar em duendes, consultar esporadicamente as cartas do tarô e apreciar a fragrância de um incenso; são diferentes os graus de adesão porque são inúmeras as possibilidades de arranjos, a partir das narrativas de base desse universo. (...) Tem-se a impressão - e algumas análises carregam nessa linha - de que se está diante de um segmento do famoso “mercado de bens simbólicos”, aberto a arranjos absolutamente individualizados, em que cada qual compõe seu próprio estojo pós-moderno de primeiros socorros espiritual.
Cada qual compõe seu próprio estojo pós-moderno de primeiros socorros espiritual.

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* https://epoca.globo.com/a-ciranda-de-sexo-dinheiro-mentiras-de-prem-baba-23066393
** https://www.youtube.com/watch?v=dXsH26uJg-I
SAAD, Gad. The Consuming Instinct: What juicy burgers, Ferraris, pornography and gift giving reveals about human nature. Prometheus Books, 2011.
AMARAL, L. Carnaval da Alma: Comunidade, essência e sincretismo na NoaEra. Vozes, 2000.
MAGNANI, José G.C. Mystica Urbe. Studio Nobel, 1999.
REIS, C,; RODRIGUES, U. A Desconstrução de um Mito. LPBooks, 2009.


2 comentários:

  1. Eis um texto corajoso, pois adentrar esse território é tarefa difícil, quase impossível, uma vez que os humanos são como Sísifo, eternamente a carregar pedras montanha acima e vê-las rolar morro abaixo...

    No entanto, entendo o que nos leva à fé, até porque acredito na energia do pensamento como força criadora, da qual pouco sabemos e que continua a nos surpreender. Somos todos, ou quase todos, em algum momento de nossas vidas, arrebatados pelo invisível...

    E é aí que me permito citar Shakespeare (perdoe a pretensão), em Hamlet, quando, diante do fantasma do pai, ele diz ao amigo: "There are more things in heaven and earth, Horatio, than are dreamt of in your philosophy".

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