Obras

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sexta-feira, 12 de outubro de 2018

A LUZ ESTÁ SE APAGANDO

É melhor reinar no inferno
do que servir no paraíso.
Paradise LostJohn Milton
Inglaterra, 1667

Estudos recentes realizados por pesquisadores americanos e europeus detectaram um quadro alarmante: A humanidade está emburrecendo. Sendo mais claro, os habitantes do planeta estão ficando cada vez mais burros! Um fato irreversível e irremediável ao considerarmos as causas desse flagelo são muitas - geográficas, culturais, históricas, que se acumulam há décadas e juntam-se às novas, não havendo nada que possamos fazer. Nada? Nada! Realidade cruel, algo como uma aluvião vindo em nossa direção e não ter por onde se proteger.

O desastre é inevitável. Vejo uma situação gravíssima a médio prazo e não confio que a humanidade encontrará uma saída porque ela é autora e executora da própria ruína, de um jeito ou de outro. A inteligência é pontual e singular, ao passo que a burrice é sistêmica, incendiária e pestilenta. Burrice é algo próprio de gente despreparada para o diálogo, incapaz de entender o mundo e imatura para a  vida. Um reinado quimérico se avizinha, a besta nem tão adormecida já despertou Perdoe por mais um texto longo, mas é impossível ser breve ante a seriedade do tema.

Um leitor, comentando o post da semana passada, sugeriu a leitura de uma crônica**do filósofo Luiz Felipe Pondé em cima da obra "Irmãos Karamazov", de Dostoiévski: "Se Deus não existe, tudo é permitido"? Tão apropriada que reproduzo um trecho:
A razão de Ivan Karamazov (muito próxima da que o ceticismo e a sofística conhecem) percebe a vacuidade de qualquer imperativo ético universal: O mundo é estilhaçado pela liberdade que a morte nos garante. Sem Deus, perde-se a forma absoluta do juízo moral: Estamos sós no universo como animais ferozes que babam enquanto vagam pelo deserto e contemplam a solidão dos elementos. A morte, que devolverá a humanidade ao pó, é o fundamento último do nosso direito cósmico ao gozo do mal.
Ao mesmo tempo em que o conhecimento explode no mundo, o homem o despreza porque está ficando burro, assim, sem meias palavras. As pesquisas revelam que os níveis de QI decrescem à taxa média de 3.5% a cada década em todo o mundo e em todos os setores da vida: educação, economia, esportes, direito, religião, política, cultura, ciência, tecnologia, comunicação... Um câncer que se alastra sem controle, embora, para alguns especialistas - e me inclino a concordar - é um processo induzido, isto é, há muito tempo as bases da educação, da formação e da informação têm sido solapadas para abrir espaço ao avanço corrosivo da estupidez. Comentando o post da Quimera, um leitor enviou uma frase de Nelson Rodrigues bem a propósito: "Os idiotas vão tomar conta do mundo, não pela capacidade, mas pela quantidade; eles são muitos", ao que eu completaria "e estão proliferando".

Já outra leitora (parece que conversa da semana passada deu resultado) citou a lenda grega do guerreiro Belerofonte que, montando Pégaso, destruiu a temível Quimera. Mas a lenda não conta que a besta é imortal; engana-se quem pensa tê-la vencido; paciente, mimética, mutante, não se esconde e quando menos se espera dá o bote, por vezes mortal. Pois aí está ela de novo e agora com enorme vantagem. Enquanto a inteligência está na serena inteireza da alma, a burrice na turbulenta cisão da mente. 

A vantagem, prenúncio de desastre iminente, é que ela se infiltrou e agora está astuta e estrategicamente incrustada em todas as camadas sociais, da professora ao ministro da suprema corte, do comunicador ao doutor, do taxista ao cientista, do bancário ao banqueiro, do atendente ao presidente, do capelão ao capitão. Nada escapa aos "braços pegajosos" do monstro que está solto e com apetite. Não demos ouvidos aos alertas da história e agora não há como detê-lo.

Para Mark Bauerlein, o olhar recai sobre a Era Digital e as implicações preocupantes no universo dos jovens e, em razão disso, no futuro: "O futuro intelectual dos Estados Unidos parece sombrio"*, declara o professor da Emory University. Ele tem razão. A pesquisa mostra que os candidatos à recente eleição americana e ex-presidentes fizeram pronunciamentos em um nível verbal equivalente a crianças de 7 a 11 anos, de modo a serem entendidos pelo grande público! Percebeu quão crítica é a situação? Serem entendidos pelo "grande público"!

A internet é algo ainda muito movo e difícil medir seu impacto sem incorrer em falhas de avaliação; ao lado dos inegáveis benefícios, há uma sombra malévola que não pode ser ignorada. "As redes sociais deram voz a uma legião de imbecis" preconizou Umberto Eco. Ainda dentro do ambiente digital, a velocidade e a quantidade de informação (geralmente sem filtro) não dão tempo para sua reflexão e interpretação; Bauerlein chama de go-go-go (vamos, vamos, vamos) ou "gratificação instantânea", resultando numa "perda coletiva de contexto e história, uma negligência de ideias e conflitos duradouros". Jung disse a mesma coisa, na primeira metade do século passado: "Ao magnífico desenvolvimento científico e técnico de nossa época, corresponde uma assustadora carência de sabedoria e introspecção". Continua atual.

O estudo de Bauerlein é um recorte bastante identificado com os de outros países como Holanda, Dinamarca, China, Portugal, Espanha e Inglaterra, por exemplo, num total de 14 levantamentos independentes. Uma das conclusões é que os jovens americanos "perderam totalmente o respeito pelos livros e pela literatura". Os estudos indicam também que esse emburrecimento começou a ser demarcado a partir dos últimos 40 anos, acelerando seu crescimento no início deste século, período em que a internet ganhou força. A correlação não é subjetiva. 

Não precisamos nem garimpar, há uma colônia de néscios e cretinos orbitando sôfregos e trôpegos à nossa volta, na política, no esporte, no escritório, nas redes, na reunião do condomínio, no supermercado, na academia.... Ânimos acirrados, nervos crispados, dentes rangentes, "punhos cerrados", opiniões impostas a ferros e berros; onde a inteligência não opera, porque parece ter perdido seu significado, a ignorância prevalece acompanhada de sua irmã, a força bruta. Nem sempre a palavra é necessária, basta o gesto, o olhar ou o esgar. O imbecil coletivo firmado por Olavo de Carvalho está nas praças, mostra a cara e assina embaixo. Minúsculas quimeras semoventes multiplicam-se contaminando o ar que respiramos, a terra que cultivamos, a aldeia que habitamos, sem trégua e sem limites.

Este blog, como qualquer outro, atua no espaço virtual, então você compreende o tamanho da minha responsabilidade e o cuidado que devo ter na hora de expor ideias, oferecendo sempre conteúdo com embasamento sólido bebido na fonte, checando informações, cruzando dados. Estamos falando das duas pontas do problema: as cavalgaduras, bestas ao cubo que aumentam o volume do alarido para serem - e são - ouvidas do outro lado pelos tolos nem tão incautos.

Não tenho dúvida alguma, os fatos mostram claramente que o atual momento da nossa civilização está escancarando o que talvez devamos reconhecer como nossa verdadeira natureza - estúpido, hostil, belicoso, sádico. Para Horkheimer, "a crise atual da razão consiste basicamente no fato de que, até certo ponto, o pensamento que se tornou incapaz de conceber tal objetividade em si, ou começou a negá-la como ilusão. O resultado isso é o desterro da razão". Em 1930, Freud já apontava tais sintomas e isso está se confirmando com força porque a máscara - a persona é a mesma que oculta a (verdadeira) face:

O elemento de verdade por trás disso tudo, elemento que as pessoas estão tão dispostas a repudiar, é que os homens não são criaturas gentis que desejam ser amadas e que, no máximo, podem defender-se quando atacadas; pelo contrário, são criaturas entre cujos dotes instintivos deve-se levar em conta uma poderosa quota de agressividade. Em resultado disso, o seu próximo é, para eles, não apenas um ajudante potencial ou um objeto sexual, mas também alguém que os tenta a satisfazer sobre ele a sua agressividade, a explorar sua capacidade de trabalho sem compensação, utilizá-lo sexualmente sem o seu consentimento, apoderar-se de suas posses, humilhá-lo, causar-lhe sofrimento, torturá-lo e matá-lo.

Não tem como não ser repetitivo: A razão nos faz humanos, sua falta leva-nos ao limiar da bestialidade: Semi-humano, comportamento de manada seguindo a maioria ou o líder, mero viver instintivo de sobrevivência e procriação, irracionalidade à flor da pele. A consciência residual é o último bastião para não ultrapassar os limites da barbárie, mas até ela - a consciência -, ao que tudo indica, está se esvaindo.

As novas tecnologias dispensam esforços físicos e mentais; a memória perde feio para os googles da vida; a capacidade de ler, refletir e interpretar tornou-se monocromática e o diálogo, monossilábico; preenchemos nosso vazio com hiperatividade, múltiplas tarefas, poli-emprego, compulsão pelos smarts e agenda lotada; amigos antes presenciais são agora virtuais, as conversas, os abraços, olhares e toques viraram zaps, emoticons, selfies e likes. Semi-humanos em direção ao pós-humano ou ao sub-humano? Não é apenas o isolamento entre sujeitos, mas do sujeito com o mundo, com a realidade, com a consciência, com o ser. É o indivíduo em seu próprio vazio.

Vou deixar algumas questões no ar, ao mesmo tempo em que sutilmente me atrevo respondê-las: Haveria alguma conexão entre a 'digitalização' do mundo, a invasão das tecnologias como extensão acessória do corpo e a crescente infantilização do homem com o emburrecimento da humanidade? Seria a tecnologia o grande projeto narrativo ou a nova "utopia" para o século 21? Não é apenas uma crise da razão, mas de muitas crises - social, econômica, cultural, institucional, científica, formacional. Há uma tempestade em curso e não sei como vamos enfrentá-la.

Quem poderia e deveria tê-la evitado não fez porque não quis. Aplausos! É a mutilação da inteligência, das ideias, da criatividade, do pensamento, da linguagem, do bom senso, da dignidade, da ética e da moral, da civilidade e, acima de tudo, das responsabilidades. As vozes do  conhecimento abafadas pela ascensão  do  zurro  dos  orelhudos. Estão trancando as portas e jogando as chaves fora. É outra espiral do silêncio em formação? De volta a Nelson Rodrigues, arguto e cáustico observador do cotidiano, por isso mesmo indigesto: "Antigamente, o silêncio era dos imbecis; hoje, são os melhores que emudecem. O grito, a ênfase, o gesto, o punho cerrado, estão com os idiotas". É o mesmo sentimento expresso por Luther King: "O que me preocupa não é a gritaria dos ruins, mas o silêncio dos bons".homo se tornando húmus? Mais que uma inversão de valores, é o colapso das estruturas formadoras do caráter humano. 

Somos todos responsáveis pelas nossas ações mais em relação ao outro, ao próximo, do que a nós mesmos, um imperativo kantiano reescrito por Jonas: "Agir de tal forma que os efeitos das nossas atitudes estejam em acordo com uma vida autenticamente humana". Um homem dentro si, o sujeito humano íntegro capaz de avaliar a real dimensão do seu gesto e a ressonância da sua voz, e de introspecção crítica e reflexiva não submetida a qualquer operador externo. Você sabe para quem é o recado. Para entender o "conjunto da obra", recomendo ler os post listados ao final.

Responsabilidade só é possível àqueles minimamente livres, com autonomia como regra de conduta consciente. Já falei aqui e reforço com veemência redobrada: A história tem seu preço e cobra caro, com juros! Convém levar a sério também a advertência de Dante: "Os lugares mais quentes do inferno são reservados aos que, em temos de crise, mantêm-se neutros". Leia a epígrafe de Milton com a ácida ironia do autor. Não tenho capacidade para  medir a escuridão dessa longa noite, a extensão do túnel e se haverá uma luz no fim e o inchaço dessa bolha não epistêmica. Também não sei se são as bestas do apocalipse. Em um futuro assombrado pela invasão dos novos "bárbaros urbanos", pelo esforço no combate às sandices recorrentes me permito reescrever o dito popular: O penúltimo a sair, por favor, acenda a luz novamente. Ou teremos que esperar alguém recomeçar tudo dizendo "Faça-se a luz!".



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Carl G. Jung. Psicologia e ReligiãoVozes, 1978.
Max Horkheimer, O Eclipse da Razão. Centauro, 2002. 
Sigmund Freud. O Mal-estar da Civilização. Obras completas v. 21. 
Mark Bauerlein. The Dumbest Generation. Tarcher/Penguim, 2017.
Hans Jonas. O Princípio da Responsabilidade. Contraponto, 2015.
* http://www.latimes.com/entertainment/la-et-book5-2008jul05-story.html
Edward Flynn,  The Negative Flynn Effect: A systematic literature review. Intelligence,  v. 59, nov/dec 2016, pp 163-169. http://www.gwern.net/docs/iq/2016-dutton.pdf  acessado em 01/10/2018. 
** http://forum.cifraclub.com.br/forum/11/152008/   acessado em 5/10/2018

Um comentário:

  1. Deveras um quadro desolador, que dá o que pensar, sr. Reis!

    Abraço.

    www.cartacapital.com.br/cultura/a-imbecilizacao-do-brasil

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