Com os contornos poéticos de um louvor em Oratio Hominis Dignitate (Florença, 1486), Giovanni
Pico della Mirandola desenvolve um diálogo entre Deus e Adão, peça que se tornou uma
obra-prima do humanismo renascentista e pérola do moderno.
É a introdução de "Conclusões Filosóficas, Cabalísticas
e Teológicas" em 900 teses a serem debatidas em público com intelectuais
de toda a Europa diante da Cúria Romana.
Desconheço outro texto que, com tanto lirismo, tão bem pudesse oferecer o mais claro entendimento sobre liberdade e responsabilidade, duas das vias arteriais por onde flui a seiva deste blog e pautas das últimas edições - ou de quase todas. Uma belíssima e profunda reflexão, um denso tratado sobre a autonomia intrínseca do Ser. Todo o texto fala direto ao coração, mas chamo a atenção para os parágrafos finais, sem desmerecimento os demais. Leia, portanto, com vagar e em silêncio, como se estivesse mesmo a orar.
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Eu li, ó veneráveis Pais, nas
fontes árabes, que Abdala, o sarraceno, interrogado sobre o que, nesta espécie
de teatro que é o mundo, despertava a máxima admiração, respondeu que não via
nada mais maravilhoso do que o homem. E com as suas palavras concordam as de
Hermes Trismegisto: “Grande milagre, ó Asclépio, é o homem!”
De minha parte, quando
indagava o sentido de tais ideias, não me satisfaziam as diversas coisas que
muitos afirmam sobre a excelência da natureza humana: que o homem é o vínculo
de comunicação entre todas as criaturas, familiar às superiores e soberano
sobre as inferiores; que pela perspicácia dos seus sentidos, pela investigação
da sua razão e pela lucidez de sua inteligência, ele é o intérprete da natureza;
que é o intermediário entre a realidade eterna e o fluxo do tempo, e, como
dizem os persas, a união, ou antes, o hino matrimonial do mundo, pouco
inferior, segundo o testemunho de Davi, aos anjos.
Grandes coisas estas, mas não as mais importantes, não a ponto de se
arrogarem a bom direito o privilégio da nossa máxima admiração. De fato, por
que não admirar ainda mais os anjos e os beatíssimos coros do céu? Mas, finalmente, creio ter compreendido porque o homem é de todos os seres vivos o mais
abençoado e portanto o mais digno de admiração, e também qual é a condição que
por sorte lhe toca na ordem universal, invejável não somente para os animais,
mas também para os astros e os espíritos ultramundanos.
Coisa incrível e maravilhosa! E como seria
diferente, se é precisamente por causa dela que o homem é estimado e proclamado
um grande milagre e um ser extraordinário! Mas que coisa é esta? Escutai, ó
Pais, com ouvidos benignos, e, por vossa humanidade, sede indulgentes para com
esta minha exposição. O Pai supremo, Deus
arquiteto, já havia plasmado esta morada do mundo tal como a vemos, templo
augustíssimo da divindade, segundo as leis de sua arcana sabedoria. Decorara as
regiões supra-celestes com as inteligências espirituais; povoara as esferas
etéreas com as almas eternas; preenchera as partes torpes e abjetas do mundo
com uma multidão de animais de toda espécie.
Mas, consumado o trabalho, o artífice quis que
houvesse alguém capaz de apreciar o significado de tamanha obra, que soubesse
amar sua beleza e admirar sua imensidão. Por isto, terminadas todas as coisas,
como atestam Moisés e Timeu, ele pensou finalmente em criar o homem. Entre
os arquétipos, contudo, não havia mais nenhum com que pudesse modelar a nova
progenitura, não havia em seus tesouros nada que pudesse adicionar à herança do
novo filho, nem havia dentre as moradas do mundo nenhuma na qual pudesse
habitar aquele que haveria de contemplar o universo.
Tudo estava completo; todas as coisas
distribuídas entre as ordens superiores, as intermediárias, e as ínfimas. Mas
seria indigno da potência paterna fracassar em sua derradeira criação, como se
fosse incapaz de gerar; indigno de sua sabedoria vacilar por falta de conselho
em algo tão necessário; indigno do seu amor benevolente que aquele ser destinado
a louvar a divina generosidade em todas as coisas fosse, ao olhar para si
mesmo, obrigado a condená-la.
Finalmente, o Supremo
Artífice estabeleceu que aquele a quem não pudera dar nada de propriamente seu,
haveria de ter em comum tudo o que pertencesse a cada um dos outros seres.
Assim ele tomou o homem, criatura de imagem indefinida, e, posicionando-o no
centro do mundo, disse:
Não te dei, ó Adão, uma
morada fixa, nem feições próprias, nem dons particulares, a fim de que seja lá
qual for a morada, a feição ou o dom pelos quais vieres a optar, tu, através de
teus próprios juízos e decisões, os conquistes e possuas. A natureza dos outros
seres, uma vez definida, é constrangida entre os limites prescritos pela nossa
lei. Tu porém não és constrangido por nenhum limite, a fim de que através de
teu livre arbítrio, nas mãos do qual te pus, tu mesmo o definas. Coloquei-te no
centro do mundo, para que possas observar mais facilmente tudo o que existe no
universo. Nem celeste nem terreno, nem mortal nem imortal te criamos, a fim de
que possas, como um livre e extraordinário escultor de ti mesmo, plasmar a tua
própria forma tal como a preferires. Poderás degenerar-te nas formas
inferiores, que são animalescas; poderás, segundo a tua decisão, regenerar-te
nas formas superiores, que são divinas.
Ó suprema liberalidade de
Deus Pai, suprema e admirável felicidade do homem! A ele foi dado ter o que
desejar, ser o que bem entender. Os animais, logo que nascem, diz Lucílio,
trazem consigo do útero de sua mãe tudo aquilo que possuirão. Os espíritos
superiores se tornaram, desde o princípio ou logo depois, aquilo que serão nas
eternidades perpétuas. Mas ao nascer o homem, o Pai lhe infundiu todos os tipos
de sementes e germes de todas as espécies vivas. E elas hão de crescer naquele
que as tiver cultivado e nele darão seus frutos. Se forem vegetais, tornar-se-á
uma planta; se sensuais, se animalizará; se racionais, se transformará num
animal celeste; se intelectuais, será um anjo e filho de Deus. E se, não
contente com o destino de nenhuma criatura, ele se recolher no centro da sua
unidade, poderá se tornar um só espírito com Deus, na escuridão solitária do
Pai que está além de tudo, transcendendo assim a todas as criaturas.
Quem não se admirará com este
nosso camaleão? Ou melhor, quem haverá de se admirar mais com qualquer outra
coisa? Não sem razão o Asclépio o ateniense disse nos rituais secretos que o
homem é simbolizado por Proteu, por causa de sua natureza mutante e
metamórfica. Daí as metamorfoses tão celebradas entre os hebreus e os pitagóricos.
De fato, a mais secreta teologia dos hebreus ora transforma o santo Enoc em
anjo da divindade, que chamam Metatron ora em outros espíritos numinosos.
E para os pitagóricos os
homens celerados são deformados em bestas e, a se crer em Empédocles, também em
plantas. Imitando-os, Maomé repetia frequentemente e com razão que quem se
afasta da lei divina se torna um animal. E estava certo, pois não é a casca que
faz da árvore o que ela é, mas sim a sua natureza entorpecida, incapaz de
sentir; não é o couro que faz o jumento, mas sua alma bruta e sensual; não é
corpo circular que faz o céu, mas a reta razão; não é a separação do corpo que
faz o anjo, mas a inteligência espiritual.
Se virdes algum servo do seu
próprio ventre, rastejando pela terra, não é um homem que vedes, mas uma
planta; se virdes alguém que vive em vãs fantasias da imaginação, como que
cegado por Calipso, e que, sucumbindo às seduções deste encanto, é escravizado
por seus sentidos, é uma besta que vedes, não um homem. Se virdes um filósofo
que discerne todas as coisas com a reta razão, venerai-o, é um animal celeste,
não terreno. Se virdes um puro contemplativo, indiferente ao corpo, imerso nas
profundidades de sua mente, então não é um animal terreno nem celeste que
vedes, mas sim um espírito superior revestido de carne humana.
Quem então não se admirará
com o homem? Ele que, não sem motivo, é nomeado nas sagradas escrituras
mosaicas e cristãs ora com o nome de todos os seres de carne, ora com o de
todas as criaturas, uma vez que ele mesmo plasma, modela e transforma seu
próprio aspecto naquele de todos os seres de carne, e sua própria mente naquela
de toda criatura. Por este motivo o persa Evante, ao explicar a teologia
caldeia, escreve que o homem não possui nenhuma imagem inata, mas muitas
exteriores e adventícias. Daí o dito dos caldeus de que o homem é um animal de
natureza variada, multiforme e inconstante.
Mas a que serve tudo isso?
Serve para que compreendamos que, uma vez nascidos com a potencialidade de
sermos o que quisermos, devemos tomar o máximo cuidado, a fim de que depois não
digam que, tendo recebido a honra, não nos apercebemos e nos reduzimos a nós
mesmos a bestas e estúpidos jumentos. Antes, lembremo-nos daquele dito do
profeta Asaf: “Sois deuses e filhos do Altíssimo”, e não abusemos da
indulgentíssima liberalidade do Pai, tornando deletéria a salutar liberdade de
escolha que ele nos deu.
Giovanni Pico della Mirandola, Discurso sobre a Dignidade do Homem. Fi, 2015.
"Mas a que serve tudo isso? Serve para que compreendamos que, uma vez nascidos com a potencialidade de sermos o que quisermos, devemos tomar o máximo cuidado, a fim de que depois não digam que, tendo recebido a honra, não nos apercebemos e nos reduzimos a nós mesmos a bestas e estúpidos jumentos. Antes, lembremo-nos daquele dito do profeta Asaf: “Sois deuses e filhos do Altíssimo”, e não abusemos da indulgentíssima liberalidade do Pai, tornando deletéria a salutar liberdade de escolha que ele nos deu".
ResponderExcluirTexto inspirador, seu Reis. Abraço.