Obras

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sexta-feira, 5 de outubro de 2018

A DOR DA LIBERDADE
Imagem: La Barriera, bronze, 2000,
Cortesia Matteo Pugliese


A conversa de hoje tem como ponto de partida você, e vem para tratar de um assunto recorrente difícil, mas tão importante quanto necessário. Eu sempre digo que a sua participação é importante porque serve de balizador para aquilo a que me proponho fazer. O silêncio costuma ser revelador; como dizia Nelson Rodrigues, "A plateia só é respeitosa quando não está entendendo nada". Se ele estiver certo, é preocupante, ou porque não estou sabendo transmitir com clareza minhas ideias, ou porque está havendo uma onda generalizada de incompreensão (já preparei um texto a respeito). Não sei se é o caso, não me agrada saber que este blog produza um efeito placebo, ou que o tema seja desinteressante ou, pior, que seja lido por um número bem inferior de pessoas quanto eu gostaria. Contudo, nas últimas semanas recebi algumas mensagens postadas no próprio blog, outras pelas redes e por e-mail. São diferentes na forma mas iguais na estética. 

Decidi, então, fazer um apanhado e trazê-las para a nossa conversa. Espero que isso possa aclarar sobre muito do que escrevo, porque faço-o acreditando que o leitor "pegou" meu raciocínio de primeira, mas não é assim. Por mais inteligente que esse leitor seja, por mais afinidades que possa ter, o que eu estudo não é o que vele estuda, o que leio não é o que vele lê, e isso certamente é um complicador para entender minha visão de mundo. Não havia como fazer um texto breve nem fácil, portanto, peço concentração total. Dito isso, vamos ao que interessa.

Eu quero dizer que nem sempre eu comento, pois muitas vezes são assuntos complexos que exigem muita explanação (...) nem sempre concordo 100%, mas mesmo assim reconheço seu empenho.

A consideração acerca dos discos voadores como propalado pela ufologia há tempos não merecem a minha atenção - parte em função do meu amadurecimento, parte como resultado de seus livros e textos. Aliás, concordo com muitos dos seus pontos de vista, e também com muitas das 'razões' que você usa para defender sua visão sobre o tema. Mas não com tudo...

Estou ciente de que a complexidade é mesmo um entrave para o pleno entendimento de certas questões, então procuro atenuar o problema voltando ao assunto por outras abordagens e outros ângulos, mas ainda não é suficiente, por isso alerto que a leitura não pode e não deve ser esporádica; os posts compõem um todo muito coerente. Apesar do esforço, sei do embaraço, mas é preciso condensar a matéria. A discordância é natural e desejável, é o que move nosso aprendizado. Não discordar te torna discípulo, um chato e um estorvo.

Quando você lança mão das chamadas Ciências Naturais (Física, Química e Matemática) para justificar improbabilidades e impossibilidades, eu seria capaz de encontrar cientistas que usariam partes dos mesmos argumentos para falar em probabilidades e possibilidades.

Eis um debate inteligente: os mesmos argumentos colocados em lados opostos. Espero que o interlocutor faça isso. É aqui que entra a transdisciplinaridade: Uma única área do conhecimento - qualquer uma - não basta para provar ou explicar isto ou aquilo, pois será sempre um saber fragmentado, incompleto, por isso é essencial o concurso de outras tantas quantas forem necessárias. Quando costuradas entre si, fica difícil propor um contraditório substancialmente equivalente. Pensando nisso, estou sempre atento em não deixar brechas. O leitor fala que "Ainda acho que  a Realidade é muito maior  e mais complexa do que imaginamos", o mesmo disse a leitora citando Shakespeare, no original: The are more things in heaven and earth, Horatio, than are dreamt in of your philosophy. Comento logo a seguir.

Talvez eu precise acreditar, por perceber o quão pequenos e insignificantes somos nós seres humanos, limitados intelectos em frágeis invólucros. Quero crer que o homem, tal qual é, não seja a única espécie inteligente. Seria um desastre. 

Chegamos ao coração da matéria, ao leitmotiv - o discurso dominante que aqui vem se expressando por múltiplas chaves, o agente legislador e operador de uma ação elementar inalienável - pensar. A Filosofia é a matriz do conhecimento, faz muitas perguntas, talvez todas, mas não responde a nenhuma, cabendo a nós pensarmos sobre elas, e é aqui que o bicho pega. O que venho dizendo o tempo todo não é uma opinião puxada no vácuo, é fruto de uma entrega total e profunda em reflexões, leituras, aulas, diálogos e debates. Você não precisa concordar, apenas pensar sobre a questão. Não se ofenda com termos mais rudes, não é nada pessoal nem quero parecer indelicado, faz parte da sacudida habitual. Quero atingir o ser, não você. Preste atenção porque vamos entrar no campo da metafísica.

O fato de termos a faculdade do pensamento, portanto, de fazer perguntas, portanto, de obter respostas, não significa que saibamos responder tudo, e quando isso acontece - e acontece sempre - nós empurramos as respostas cada vez mais para trás até chegar onde só é possível haver uma última saída: Deus. Essa entidade, pura criação do espírito, passa a ser responsável por tudo, absolutamente tudo aquilo que não sabemos ou não temos competência para responder. Chame a esse deus como quer - energia primordial, força cósmica, poder divino, invisível, realidade maior... fica a gosto do freguês. Agora, tirando deus da parada., o que resta? Nada, vazio, vazio completo, e você perdido nesse vazio, no meio do nada, sem respostas, só e mudo.

Por que deve haver uma "realidade maior"? Quem disse que há uma? Por que deve haver uma "força invisível"? Quem disse que há uma? As religiões? Ora, mas se nós fundamos as religiões justamente para que nos dessem respostas, e se fomos nós que criamos também as perguntas, isso não vale, é um truque vil, é trapaça intelectual, é o mesmo que eu criar um jogo e as regras que determinem um vendedor: eu! Sempre incorremos num grande equívoco, ou logro - no que aproveito para me corrigir também: a etimologia de religião não é religare -  religar, uma distorção habilmente manobrada pela Igreja para fortalecer a sua doutrina. Religar quem com quem, você com a sua própria criação? A verdadeira tradução para religiosum (religioso) é "aquele que cumpre seu dever", conforme Cícero (séc. I), quando afirma que religião vem de relegere - reler, rever, reexaminar, e isso faz toda a diferença:

Aqueles que, diligentemente reliam todas as coisas que se referem ao culto dos deuses, foram chamados de religiosos, a partir de reler; tanto quanto elegantes são elegantes de eleger como diligentes de diligenciar, inteligentes de inteligir; pois em todas as palavras há a mesma força de ler que há em religioso.

E quando não houver deus, deuses, força cósmica, ser superior ou coisa do tipo, chame a cavalaria: oráculos, anjos, gurus, seitas, líderes, mestres, espíritos, alienígenas ou o que sua mão alcançar - cristais, pirâmides, seu gato, rio Ganges, gafanhoto, elefante, louva-deus, astros... a loja de conveniência da fé está sempre aberta e lotada. Dada a nossa insignificância, dada a nossa fragilidade, dada a nossa incompetência e dada a nossa ignorância, nós idealizamos uma 'dimensão transcendente' para justificar, valorizar e elevar a nossa reles existência, como a dizer para nós mesmos que temos uma razão para existir, algo que nos distingue dos quadrúpedes aos moluscos.

Somos a única espécie que nutre e preserva um estranho, secreto, irrefreável, indefinível e profundo desejo de submissão a uma entidade criada por ela mesma. Você percebe a incoerência, a fraqueza, a fratura, a rupturaProduzimos uma divindade para nos submetermos docilmente a ela! Servidão voluntária perpétua. Ao contrário da suposta "religação", ruptura! É o mesmo que você contratar um sujeito para ser seu chefe, fazer tudo o que ele mandar. Faz sentido? Isso é de uma estupidez colossal. Submissão é melhor que liberdade? Tem certeza

Isso de botar tudo nas mãos do transcendente, do imponderável ou de uma "realidade maior" é muito cômodo, muito prático, uma fuga conveniente, para não dizer um ato de covardia: Sem culpas, sem prestação de contas e sem responsabilidade. Isso nos deixa no mesmo patamar existencial da lacraia, que faz o que tem de fazer sem perguntar, sem noção do que faz nem da sua própria existência e sem escolher se pode fazer outra coisa. Faz porque é da sua natureza fazer. Se você existe e não pensa, não questiona, não escolhe seu próprio caminho, você é uma lacraia,faz o que faz a mando de um "algo" qualquer criado por você mesmo. Lamento informar, você é só uma coisa que existe, um nada, um "frágil invólucro", um cadáver adiado como dizia Fernando Pessoa. Doeu?

Agora vem a melhor parte da festa: De novo, tire deus, ture os gurus, os alienígenas, as pirâmides, os gafanhoto. O que resta? Resta você, você com você mesmo, você e a sua consciência. Mas há um paradoxo aqui! Como prescindir de um deus se sou frágil, covarde, insignificante, chorão, mimado? Bem, você é tudo isso porque quer! Doeu de novo? Problema seu. É possível existir sem esse "algo" superior dando as cartas sem desmoronar? Sim, mas não é tarefa fácil, não para frouxos porque dói mesmo, e como ninguém gosta de dor e trabalho, nada flui. Uma coisa é o que você idealiza para si, outra é o que a realidade joga na tua cara, e isso dói para valer.

Mas a pior parte da festa é essa: se nada disso estiver por aí e o sujeito não tiver bons e sólidos alicerces, ele despenca para o fundo de um poço lamacento e se submete ao colapso do corpo e da mente - depressão, melancolia, ansiedade, angústia, solidão, desamparo, neurose, desânimo, infantilidade, ausência de sentido da vida, vazio... então os artifícios químicos assumem função substitutiva. De qualquer modo será, sempre, inevitavelmente, uma dependência externa.

Você tem a liberdade de pensar e escolher mas se ilude achando que a exerce. A partir do momento em que transfere a outrem as rédeas da sua vida, deixa de ser o condutor de si, o narrador de sua própria história, o autor de sua obra; fará o que este outro ordenar que faça: se mandar rezar, reza, se mandar ajoelhar, ajoelha, se mandar enxugar gelo três vezes ao dia, enxugará. Você quer continuar sendo uma centopeia obediente e conformada, sem autonomia, ou se tornar um ser ciente capaz de orquestrar seu próprio espetáculo? Será uma escolha assim tão difícil?

De qualquer forma, como você está condenado a ser livre e sofrer por isso, saiba que a angústia de viver o acompanhará, seja pela escolha feita, seja pela não feita. Essa é a única realidade possível, goste-se ou não, queira ou não. Na próxima vez que você se encontrar com a sua consciência, deixe que ela faça a escolha, mesmo sabendo que vai doer de qualquer jeito.

Leia de novo:
O ser estilhaçado
Vazio que não se preenche
Em busca do útero perdido
Praia é abatedouro de filósofos

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Cícero, Da Natureza dos Deuses (De Natura Deorum). Ideia, 2018.

Um comentário:

  1. Que traulitada!

    "Se Deus não existe, tudo é permitido"? ("Irmãos Karamazov", Fiódor Dostoiévski).

    Confira o texto de Luiz Felipe Pondé nesta sítio -http://forum.cifraclub.com.br/forum/11/152008/

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