Obras

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sexta-feira, 21 de dezembro de 2018

ENTERREM SEUS MORTOS, DEUSES!

Bronze, s/n s/d
Cortesia Matteo Pugliese

A postagem anterior sobre deuses "ressuscitados" gerou o comentário interessante de um leitor. Na verdade, ele se refere ao personagem da matéria, o pseudo tudo Erich von Däniken, "um picareta de sucesso internacional", segundo ele. Acho que vale a pena continuar o assunto.

O leitor tem razão ao dizer que Däniken teve tempo e espaço para para divulgar suas bobagens "apenas para os sinceros de coração", ou seja, somente para pessoas desinformadas, crédulas, ingênuas, predispostas a aceitar os fatos sem questionamento.
E ele concorda também que "ainda teremos que aturar toda uma chusma de vendedores
e evacuadores de mitos e enganos por muito tempo". Você tem razão, caro leitor, mas, se eu não estiver errado - penso que não estou - essa credulidade inocente vem decrescendo, paulatinamente, mas vem. A malha de informação, a facilidade de acesso ao conhecimento, o desmascaramento de patifes tornou-se prática corrente, e não estou falando só de políticos, celebridades, "mestres", religiosos e outras figuras.

Mas o leitor há de me permitir discordar em um ponto, embora entenda o sentido de sua colocação. Diz ele: "Penso que o personagem em tela (e seus similares) é refém da demanda, o que atenua seu dolo". Não sei se concordo, por uma questão de lógica: Se as pessoas que circulam pelas praças são potenciais vítimas de assalto, o bandido que as assalta terá sua pena atenuada por elas estarem lá? O trombadinha que rouba o motorista no sinal deve ter sentença branda porque a vítima deveria andar com o vidro do carro levantado? O Sr. Däniken et caterva não são reféns da demanda, agem porque são intrinsecamente inescrupulosos, planejam so modus operandi com total clareza dos atos em todas as etapas, da falsa pesquisa à "venda" do produto. O Sr. Däniken nunca pesquisou nada e se aventurou pelo mundo "evacuando" bravatas com a maior desfaçatez, divertindo-se às mossas custas. Refém da demanda? O problema todo é que as pessoas acreditam a mentira, evitam a verdade, ignoram o certo e valorizam o errado. Não pode dar certo. 

Tenho reiteradamente escrito aqui sobre questões de ética, moral e responsabilidade, requisitos que obviamente inexistem em Däniken e "similares". A propósito, e não é propaganda porque ainda é muito cedo para isso, estamos preparando um artigo que trata justamente dessa questão, muito oportuna, diga-se, sobre deuses e simulacros como representações para uma realidade imaginária. Simulacros? No foco do estudo, gurus, médiuns e astrólogos, mas vale também para guias, profetas, xamãs, ayatollah, rabino, mulá, curandeiros, mestres, líderes espirituais, videntes, "contatados", clérigos, pastor, ministroenfim, todos aqueles que, de alguma forma, com discursos tão vazios quanto suas cabeças, exercem um oportunista e narcísico poder de sedução sobre pessoas por si só fragilizadas e vulneráveis, como "mediadores" entre o divino e  o humano, ou, se preferir, entre o sagrado e o profano.

Agradeço ao leitor pela oportunidade de estender algumas linhas sobre o tema. Volto a dizer que desconheço o alcance deste blog, seu poder de penetração nas redes, se gera alguma conversa em roda de bar, em reunião de amigos ou na mesa de jantar. Tudo o que sei é que faço a minha parte da melhor forma possível, do jeito que sei fazer. Se você, leitor, repercute as ideias aqui trabalhadas com seus amigos, colegas e familiares, então posso pressupor - e desejar - que uma "força-tarefa" invisível se forme para além das paredes que me cercam e para dentro do universo infinito que há por trás da tela à minha frente. Se assim for, então, um dia, não haverá demanda alguma que faça o Sr. Däniken e seus asseclas ressuscitarem novamente. Os deuses que os enterrem.

2 comentários:

  1. Sr. Reis, sinto-me honrado por meu comentário ter motivado seu post. Aprendi sobremaneira desde que passei a acompanhar seus escritos!

    Longe de propor um duelo, sustento que os tais em questão, assim como os traficantes de drogas, comercializam seus produtos - crenças ou objetos - com quem os valoriza, coisa que não ocorre em assaltos, roubos ou furtos; nestes últimos, a vítima só tem prejuízo; não há relação de troca.

    A propósito deste e de outros textos de sua autoria, compartilho um trecho do livro "Ambiguidade", de Simona Argentieri: "Cada ser humano, na verdade, tem uma profunda necessidade de pertencer a alguém e a alguma coisa (uma nação, uma raça, um clube de futebol, uma partido, uma Igreja...) e, apesar das declarações oficiais de desejo de liberdade, nos níveis mais profundos, temos ainda a necessidade oposta de obedecer a um líder, a um chefe que tranquilize as nossas partes infantis e dependentes.
    "Em situações extremas e catastróficas (encantamento, prisão política...), regredir à ambiguidade constitui uma formidável defesa a serviço da vida, que permite uma espécie de 'confiança' perversa no próprio carcereiro, uma aceitação interior paradoxal, não conflitual, de uma realidade externa intolerável".

    Julio Cabrera, diz que "Uma sociedade ética deveria, porém, ser uma luta plural entre ilusões e uma luta pelos próprios direitos de fantasiar o mundo como cada um for capaz de fazê-lo. É claro que é absolutamente imoral impor um mundo científico à massa de pessoas para as quais é impossível sobreviver num mundo científico, assim como seria imoral obrigar alguém a morar em um mundo místico".

    Compartilhei os trechos acima unicamente por serem "deliciosos" e contextuais.

    Simona Argentieri: AMBIGUIDADE. Rocco, 2011.
    Julio Cabrera: A ÉTICA E SUAS NEGAÇÕES. Rocco, 2011.

    Por fim, continue a nos inspirar com seus textos sempre lúcidos e dolorosamente francos, Sr. Reis.

    Abraço.






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  2. Brilhante o texto, Carlos. Achei muito boa a comparação desses "missionários" que têm o dolo atenuado por serem reféns da demanda com um bandido que fica a postos para assaltar os transeuntes em uma praça. Mais uma vez, depois da leitura, fico mais inclinada a acreditar menos nesses intermediários de Deus.

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