Obras

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sábado, 15 de dezembro de 2018


OS DEUSES NÃO ESTAVAM MORTOS?

Acho que você percebeu a referência irônica com a famosa frase de Nietzsche "Deus está morto". Neste caso, estou falando dos deuses mesmo, aqueles, inventados lá pelos anos 1970 com a expressão que ficou célebre: "Deuses astronautas". E não é que foram ressuscitados? Voltou a circular por terras brasileiras o "escritor" Erich von Däniken, principal divulgador da fantasiosa teoria de antigas civilizações alienígenas no nosso planeta em tempos remotos. Fantasiosa e falaciosa, para dizer o mínimo. Däniken foi agora ressuscitado pela mídia, participando de colóquios e outros eventos. A história é mesmo cíclica e parece que não aprende com os erros do passado.


A febre dos deuses astronautas contagiou o mundo há quase cinco décadas. Dezenas de obras foram escritas, seminários, congressos, documentários, entrevistas, autores surgiram da noite para o dia, todos "descobrindo" alguma coisa nova como nunca antes. Então houve uma avalanche de "Pedras de Ica", "Lousa de Palenque", artefatos, desenhos, ruínas, monumentos, templos, pirâmides, instrumentos, pinturas, sítios arqueológicos, naves, textos "decodificados", uma quantidade de baboseiras sem fim, tanto quanto os flibusteiros que inauguravam a linha da "ufoarqueologia" - estudos voltados à pré-história que sugeriam a presença de seres extraterrestres no passado. 

Nunca houve visitantes ou civilizações alienígenas "avançadíssimas" no passado ou em qualquer outra época no curso da história. Tudo não passa de delírio, desvario, invenções fabulosas e imaginação fértil daqueles que carecem de leitura, saber científico, sobriedade, responsabilidade e senso crítico.  O que estes "pesquisadores" fizeram foram inferências totalmente anacrônicas, interpretando os fatos dentro da realidade da sua época, e não da realidade do período das respectivas obras. É mais fácil, se não podem ser provadas, também não podem ser desmentidas. Ou não podiam. Com tantos deuses na vitrine, esqueceram-se do "deus das lacunas", ou "argumento da ignorância", uma falha discursiva que ocorre quando uma questão é respondida com explicações que não podem ser verificadas, assentando-se na irracionalidade, na mística, na falácia ou no sobrenatural, supostamente incompreensíveis ao leigo. Ou seja, você pode "ler" os sinais do jeito que bem entender que ninguém vai contrapor. Os tempos mudaram, mas eles petrificaram como as pedras que pesquisam. Para concluir, sem meias palavras, trata-se de má-fé e sensacionalismo barato em nome de interesses escusos.

Alguns desses autores formaram uma linha de frente - Zecharia Sitchin, Robert Charroux, Peter Kolosimo, W. Raymond Drake, além de Däniken, que jogou gasolina na fogueira dos egos com o best-seller "Eram os deuses astronautas?", e as labaredas desse inferno torram a nossa paciência até hoje. O que antes era um debate polêmico plausível hoje virou sinônimo de insanidade. Mas voltemos ao ponto.

Os deuses nunca foram astronautas assim como Däniken nunca foi pesquisador de raiz. Ele nunca teve preparo científico para sustentar suas posições mirabolantes, nunca teve refinamento crítico para questionar as fontes primárias nem inteligência suficiente para perceber as besteiras que diz. Simplesmente aproveitou um filão pouco explorado, enfileirou ideias, empilhou aqui e ali algumas peças, coletou dados sem filtros prévios e se pôs a publicar livros e sair por aí vendendo suas teorias delirantes. Comercialmente foi um achado, encheu as burras de dinheiro e se deu bem. Toda essa patuscada cabia no bonde da história naquela época. Aliás, cabia de tudo. E constato, com pesar e sem surpresa, que colegas continuem incensando o Sr. Däniken mesmo mumificado como seus deuses.

Däniken, um hoteleiro suíço com veia aventuresca, foi desmentido inúmeras vezes sobre as suas descobertas e expedições, que ele mesmo confessou tê-las inventado para "ilustrar" e "motivar" a leitura de suas obras. Ele nunca esteve nos lugares que alegou ter estado, nunca pesquisou tumbas e ruínas que descreve em seus livros, nunca esteve com os cientistas que disse ter estado. Ou seja, nunca chegou nem perto de ser arqueólogo. Foi condenado e cumpriu prisão em três oportunidades, acusado de vários crimes: fraude, peculato, falsificação, falsidade ideológica e furto. No julgamento, o laudo da avaliação psiquiátrica apontou que o réu era mentiroso contumaz e um psicopata criminal. Däniken admitiu ter recorrido ao que chamou de "efeitos dramáticos" para defender seus argumentos por julgar "atos lícitos para um escritor".

Que ironia, os "viajantes do passado" desmascarando o "viajante" do presente. A Senhora Verdade, quando posta a nu, não poupa castigar os penitentes. Quando Carl Sagan declara "Não conheço livros recentes tão cheios de erros lógicos e factuais como os trabalhos de von Däniken"¹, é caso para se pensar. Lamento pelos colegas que o bajulam, mas eu não posso condescender com velhacos.

Às portas de entrar na terceira década do século 21, o mundo já não venera os deuses do passado, muito menos os deuses astronautas. O mundo rejeita o Sr. Däniken e seu sequioso séquito. Se ele precisa de dinheiro para sobreviver e pagar suas contas, que vá vender miniaturas Páscoa, reproduções das pinturas rupestres em toalhinhas de café, réplicas de alienígenas para decoração, pedras de Ica como peso de papel. Temos coisas mais importantes a fazer do que dar ouvidos a vigarices de quinta contadas por gente de segunda. Alguém precisa avisar o cidadão que seus deuses estão mortos antes que ele lhes faça companhia.

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https://www.amazon.com/The-Space-Gods-Revealed-Theories-Daniken/dp/0064650928/ acessado em 14/12/2018
¹ "I know of no recent books so riddled  with logical and factual  errors as the works of von Daniken" In STORY, Ronald. The Space-gods Revealed. Harper & Brothers Pub., 1977.
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3 comentários:

  1. "Os tempos mudaram, mas eles petrificaram como as pedras que pesquisam. Para concluir, sem meias palavras, trata-se de má-fé e sensacionalismo barato em nome de interesses escusos".

    Deveras, é um picareta de sucesso internacional esse autor! De fato, toda a bobagem que ele preconiza teve tempo e espaço, mas isto apenas para os sinceros de coração, é claro. Ainda teremos que aturar toda uma chusma de vendedores e evacuadores de mitos e enganos por muito tempo - aí estão religiões milenares. Se há mercado...
    Penso que o personagem em tela (e seus similares) é refém da demanda, o que atenua seu dolo.

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  2. Muito bem escrito como sempre, Carlos. Eu acredito em Deus, mas, principalmente devido aos escandescâlos recentes envolvendo o espiritismo, prefiro dispensar intermediários do Mestre e entrar em sintonia direta com ele.

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