Obras

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sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

CONTRADICÇÃO

Quando publiquei os textos em que o Sr. Däniken foi alvo da crítica, não esperava que o tema fosse prosperar, mas, graças àquele leitor atento e de boa cultura que enviou uma tréplica, me vi estimulado a prosseguir. De saída, admito que os exemplos dados ao discordar sobre a demanda não foram felizes, embora eu tenha entendido o seu pensamento. Ele tem total razão: entre bandidos e vítimas, só estas ficam no prejuízo; entre gurus e devotos, todos ganham (sem entrar no mérito de quem ganha o quê) porque um procura pelo outro, um precisa do outro. O que está em pauta agora é a outra ponta deste arco, justamente os admiradores, os fanáticos, os devotos. Tenho escrito sobre isso por vários ângulos, diversas abordagens, trazendo obras e autores da melhor qualidade. Mas sempre fica uma brecha a ser explorada. Vejamos o que temos hoje.

O leitor começa citando um trecho de Simona Argentieri em Ambiguidade (Rocco, 2011): "Cada ser humano, na verdade, tem uma profunda necessidade de pertencer a alguém e a alguma coisa (uma nação, uma raça, um clube de futebol, um partido, uma igreja...)". Eu sigo a partir das reticências - ...uma tribo, um grupo de whatsapp, uma rede - qualquer coisa com que possa se identificar. A autora prossegue: "(...) e apesar das declarações oficiais de desejo de liberdade, nos níveis mais profundos, temos ainda a necessidade oposta de obedecer a um líder, a um chefe que tranquilize as nossas partes infantis e dependentes". Eu poderia indicar vários posts nessa mesma linha de raciocínio - A dor da liberdade é um deles. Simona , 78 anos, é psicanalista italiana, autora de várias  obras além da citada.

Aqui ela é direta: "Em situações extremas e catastróficas (...), regredir à ambiguidade constitui uma formidável defesa a serviço da vida, que permite uma espécie de "confiança perversa" no próprio carcereiro, uma aceitação interior paradoxal, não conflitual, de uma realidade externa intolerável". 

O anjo sorridente de face rosada da fantasia afaga o coração e conforta o espírito, enquanto a Quimera da realidade sangra os olhos e lacera a carne, porque é cruelmente mais verdadeira e convincente. Para evitar o conflito com essa "realidade externa intolerável", o indivíduo recorta a parte que não lhe convém e coloca outra em seu lugar - a sua realidade - idealizada, só imaginariamente realizável.

Ambiguidade, do latim ambiguitas - equívoco, incerteza, duplicidade, mas pode chamá-la também de contradição, hipocrisia, cinismo, mentira, falsidade, incoerência e, como mostra o título, contradicção - dizer uma coisa e fazer outra. Isso explica o comportamento nas duas pontas: de um lado, figuras como Däniken que mentem e enganam dissimulando suas reais intenções, e de outro, o fiel que deposita confiança perversa para se desviar da realidade intolerável a que vive submetido.

É como o espiritualista de ocasião que repudia o materialismo e o ceticismo da patuleia até o ponto em que, diante de uma "situação extrema" como enfermidade grave, por exemplo, substitui de imediato os tratamentos alternativos (curas espirituais, medicina ayurvédica, homeopatia, naturopatia, terapia holística, terapia quântica, florais, chás, infusões...) pela medicina tradicional materialista com seu arsenal de bisturis, drogas, enxertos, agulhas, tubos, cateteres, próteses, transplantes e terapias químicas. Depois, são e salvo, agradece aos mentores espirituais por guiarem a mão do cirurgião, que, por sinal, era de Câncer cm ascendente em Touro, budista e vegano! Alguma dúvida que estamos diante de um ser fragmentado, dividido, assombrado, incerto e vagueante?

Ainda não li o livro (pretendo fazê-lo), mas considerando que Simona segue a linha freudiana, seu discurso dialoga também com Melanie Klein, que nivela a infância (do latim in fans - incapaz de falar) no mesmo patamar em que se inscreve o homem primitivo, fazendo coro com Freud: "Compreendemos como o homem primitivo tem necessidade de um deus como criador do universo, como chefe de seu clã, como protetor pessoal (...) Um homem dos dias posteriores comporta-se da mesma maneira. Também ele permanece infantil e tem necessidade de proteção, inclusive quando adulto; pensa que não pode passar sem apoio de seu deus". E Freud segue dizendo que "A questão da angústia constitui um ponto no qual convergem os mais diversos e importantes problemas e um enigma cuja solução irá projetar mais luz sobre toda nossa vida psíquica".

Para finalizar, reiterando que o amigo leitor tem razão, repito uma frase que já escrevi e falei muitas vezes: Sempre haverá espetáculos medíocres enquanto houver plateias medíocres a lhes aplaudir. Ainda há muita demanda, de fato. Respeito o direito de cada um acreditar em quem quiser e no que quiser - bruxas e milagres, aliens e anjos, astros e pedras. A este blog cumpre informar, esclarecer, alertar, prevenir sobre aqueles não só iludem a boa-fé como prostituem-na com farsas, patifarias e parlapatices. Como o Sr. Däniken e similares. O mundo padece de adultos infantilizados e carece de gente responsável. 

2 comentários:


  1. "É como o espiritualista de ocasião que repudia o materialismo e o ceticismo da patuleia até o ponto em que, diante de uma "situação extrema" como enfermidade grave, por exemplo, substitui de imediato os tratamentos alternativos (curas espirituais, medicina ayurvédica, homeopatia, naturopatia, terapia holística, terapia quântica, florais, chás, infusões...) pela medicina tradicional materialista com seu arsenal de bisturis, drogas, enxertos, agulhas, tubos, cateteres, próteses, transplantes e terapias químicas. Depois, são e salvo, agradece aos mentores espirituais por guiarem a mão do cirurgião, que, por sinal, era de Câncer com ascendente em Touro, budista e vegano! Alguma dúvida que estamos diante de um ser fragmentado, dividido, assombrado, incerto e vagueante?"

    Outro texto inspirador, Sr. Reis!
    Abraço.

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  2. Excelente o texto como sempre, Carlos. Ontem assisti a um filme que tem a ver com a temática abordada aqui. Chama-se Clube de Compras Dallas. Na trama, baseada em acontecimentos reais, o protagonista soropositivo recebe a notícia de que tem 30 dias de vida. Os remédios que os médicos americanos lhe prescrevem são altamente tóxicos e, por isso, ele vai buscar uma droga alternativa no México. Ele a contrabandeia e começa a traficá-la nos EUA. Resultado: ele consegue uma sobrevida de sete anos, contrariando a ciência e o prognóstico médico. Depois desse episódio, o tratamento da AIDS no mundo mudou. A ciência, então, tb dá seus voos cegos, né?! Fica a reflexão. Um abraço.

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