Obras

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sábado, 5 de janeiro de 2019

MENTES EM CATIVEIRO
Nun ist die luft von solchem spuk so voll, dass niemand weiss, wie er ihn meiden soll.
O ar está tão cheio de assombrações que ninguém mais sabe como evitá-las (tradução livre).
Fausto, de Goethe

Semanas atrás você leu aqui algo que me deixou pensativo desde então: Confiança perversa no próprio carcereiro. É uma daquelas frases que, em poucas palavras, tem o condão de resumir um conjunto de proposições e nos levar a densas reflexões, no caso, sobre o comportamento humano. "Confiança perversa" pode ser entendida como a crença inabalável em um único sistema de ensinamento, doutrina, ideologia ou filosofia de qualquer natureza, onde é proibido o contraditório, onde não se levantam dúvidas ou questionamentos sobre os preceitos fundadores e onde não se tolera oposição às "certezas pétreas". Essa overdose, ou intoxicação doutrinária, é nomeada narcose social


Na medicina, mais exatamente na Psiquiatria, narcose diz respeito a perda de sentidos, a anestesia, adormecimento ou entorpecimento sem que haja necessariamente qualquer lesão orgânica. Ela é resultado de um processo inconsciente de interrupção doe contato com o mundoprovocando uma completa distorção na percepção da realidade, um enfraquecimento das funções da autoestima (ego) em razão da imaturidade, fragilidade e impotência do selfimplicando numa perda de fluidez entre o contato e o afastamento da realidade. Nesse contexto, narcose social se refere aos agentes (seitas, partidos...) que submetem ao indivíduo uma pesada e contínua carga de fundamentos ideológicos. Com velada dominação psicológica sobre a insegurança, o desamparo e a vulnerabilidade manifestas do indivíduo, oferecem - manipulam -, em troca sessa fidelização compulsória, dessa confiança perversa, providências de caráter duvidoso. 

Não se pode permitir que oráculos ineptos apontem os rumos de nossa vida quando mal sabem conduzir a própria, nem que estafetas do além desrespeitem a memória dos mortos com mensagens inexistentes, ou que avatares inaptos, narcísicos e mercenários vendam impunes espiritualidade ordinária. Isso vale para governantes canalhas que enganam com trapaças e retórica falaciosa, e ainda líderes, pastores, clérigos, messias, sacerdotes e demiurgos cretinos. Inclua-se seitas, divindades, templos, instituições, facções, grupos, sociedades, classes. É essa gente que mantém as mentes em cativeiro. Chame como quiser - mercado da esperança, comércio espiritual, império das ilusões...

Falando sério,  para o dia de amanhã o que você prefere: consultar a cotação do dólar, o clima e o trânsito na cidade, as últimas medidas do governo e o saldo bancário, ou em que posição Júpiter estará em relação a Sagitário, se sua avó falecida há 28 anos "está bem do outro lado" ou se seu anjo da guarda estará de plantão? Você pode até escolher tudo isso junto, mas nunca vai saber se o lote de crenças funciona na prática. Basta lembrar o exemplo do espiritualista que, quando o bicho pega, esquece as "dimensões superiores" e se agarra rapidinho ao bom e velho mundo das coisas reais. Depois, claro, creditará ao "espiritual" a boa sorte alcançada. É a gangorra psíquica da vida cotidiana. Em certos casos, torna-se um dolorido conflito existencial pelo despreparo para enfrentar uma realidade que não negocia, que joga duro, primeiro bate e depois pergunta; valores contrários entram em choque, incertezas dobram de tamanho, o que estava fissurado desmorona, o que era pedra vira fumaça.

É possível traçar algumas linhas de comparação com a Síndrome de Estocolmo, que é quando a vítima se afeiçoa pelo opressor - ou carcereiro, tanto faz. Perceba a sutil semelhança. De acordo com a Psicanálise, o que ocorre é uma resposta psíquica, uma estratégia ilusória da psique para se proteger da realidade violenta e perigosa que lhe é imposta. Estamos falando, de um lado, de sobrevivência psíquica, e de outro, de sobrevivência física. Em ambos os casos estamos falando de dependência, portanto, o "refém" verá sempre a mesma paisagem pela única janela que dispõe, e terá sempre o mesmo cardápio, todos os dias. A complexidade deste tópico em especial é gigantesca, diria inesgotável. Nem mesmo Freud foi capaz de esgotar o assunto. Ainda assim, pretendo voltar ao assunto porque ele (me) produz um fascinante aprendizado.

Fausto tem razão, as fantasmagorias estão por toda a parte, e pior, multiplicam-se e acumulam-se nos guetos sinistros da escuridão humana. Se não há como evitá-las, ao menos temos como nos prevenir. Basta um pouco mais de luz e razão.

2 comentários:

  1. Grande, grande!

    "Não se pode permitir que oráculos ineptos apontem os rumos de nossa vida quando mal sabem conduzir a própria, nem que estafetas do além desrespeitem a memória dos mortos com mensagens inexistentes, ou que avatares inaptos, narcísicos e mercenários vendam impunes espiritualidade ordinária. Isso vale para governantes canalhas que enganam com trapaças e retórica falaciosa, e ainda líderes, pastores, clérigos, messias, sacerdotes e demiurgos cretinos. Inclua-se seitas, divindades, templos, instituições, facções, grupos, sociedades, classes. É essa gente que mantém as mentes em cativeiro. Chame como quiser - mercado da esperança, comércio espiritual, império das ilusões..."

    Reproduzo abaixo os dois últimos parágrafos da crônica "As cartomantes", de Olavo Bilac, a propósito da tônica de seu blog:

    "O 'conto do vigário' nasceu ontem, e a polícia ainda não conseguiu extingui-lo. O 'jogo do bicho' é um vício infame, e a polícia ainda nada pôde contra ele. Por quê? Porque não é difícil prender e castigar o passador do conto do vigário e o banqueiro do jogo do bicho; mas é impossível exterminar a raça dos tolos; e enquanto houver tolos que queiram ser enganados, eles próprios inventarão quem os engane.
    "Não perca a polícia o seu tempo, que é contado, e aproveite-o em coisas úteis. Porque, sem ter deitado as cartas, e sem acreditar muito na cartomancia, já sei qual será o resultado da perseguição: em vez de cinquenta ou sessenta cartomantes, teremos cinco ou sei mil - e até as autoridades policiais comprarão baralhos de Tarô, e começarão a estudar a ciência perseguida..."

    Abraço, Sr. Reis.

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  2. Seus textos sempre me deslocam, Carlos. Embora eu acredite no oculto de tudo que tem materialidade, você sempre nos alerta para as práticas mal-intencionadas desses que exploram o mistério da vida.

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