Obras

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sexta-feira, 11 de janeiro de 2019

VOCÊ PENSA QUE PENSA?

O assunto "opinião pública" volta à baila por estar diretamente ligado a tudo aquilo que você pensa, ao que pensa que pensa, às ações e respostas que dá ao mundo. Todos nós estamos sujeitos a uma avalanche de notícias, informações, opiniões e ideias onde nem sempre é possível distinguir a verdade  da mentira. Até onde podemos confiar sabendo de manipulações, distorções e falácias em todos os setores da sociedade e do Estado, na publicidade, na propaganda, nas redes e na opinião pública - ou "senso comum"? Estamos vivendo a praga das fake news onde todos dizem o que bem entendem, do jeito que querem e sem entender nada do que estão a dizer. Não pense que você está imune a este flagelo. E quando falo em Estado, me refiro aos três poderes e a um "quarto poder" para onde os demais convergem, de uma forma ou de outra - a grande imprensa.

Que a mídia subverte e (re)direciona a informação todo mundo sabe, ninguém duvida e ninguém contesta. É um "poder" paralelo que elege governantes com a mesma rapidez com que os destrona quando não lhe convém, que planta mentiras e enterra verdades, gera lendas e crenças, fortalece boatos, cria mitos e inventa fatos. Não estou demonizando os veículos de comunicação e seus agentes, mas a estrutura - a super estrutura - midiática tem sim esse perfil. Para o rebanho desordenado - a massa baudrillardiana - aplicam-se filtros na fabricação de consenso para uma lavagem cerebral sofisticada da realidade. Exagero? Veja o que disse o veterano jornalista americano Walter Lippmann em 1920 (note, há quase um século):
A manipulação consciente e inteligente das opiniões e hábitos organizados da massa é um aspecto crucial de um sistema democrático. Cabe às "minorias inteligentes" executar essa manipulação das atitudes e opiniões das massas.
Vou dar um exemplo banal de como sua mente é embaralhada, entorpecida e conduzida de modo tão sutil que você nem percebe que não está pensando: O noticiário da TV. Diversas informações são dadas simultaneamente - a fala do apresentador, a cena do fato (em looping), outro ângulo da mesma cena, a fala do repórter local; no rodapé,  as chamadas - título da notícia, cotação da bolsa, decretos do governo, clima, câmbio, etc. Impossível apreender tudo. Outro exemplo: Após os jogos da Copa na Rússia, a mesa de debates se torna uma zona de conflito audiovisual: Seis participantes falam ao mesmo tempo enquanto uma janela mostra repetidamente os principais lances do jogo; ao lado, na vertical, ficha técnica do jogo e no rodapé, uma tarja em movimento informa os resultados da rodada e as negociações futebolísticas do momento. Moral da história, você assiste tudo em estado cataléptico. Você não precisa pensar porque nem absorveu a tônica dos comentários mas foi afetado psicologicamente pela ruído de fundo do debate. Isto se tornou tão normal que já nem damos conta que entramos na corredeira dos acontecimentos. 

A cultura de massa, ou cultura popular, tem no entretenimento seu principal produto de modo a aliciar, seduzir, induzir e adestrar o público através da espetacularização do cotidiano, formando padrões hegemônicos de pensamento e de comportamento, levantando um véu de alienação, levando-o a identificar-se com as representações sociais ou ideológicas nelas presentes. Para muitos autores, a simbiose homem-máquina (tecnologia, imagem, redes, mundo virtual) nos torna precursores de uma sociedade tautista - tautológica e autista,  uma espécie de solilóquio coletivo.

Nessa sociedade do espetáculo, os mecanismos de controle da informação se incumbem dos arranjos noticiosos em todos os campos sociais - artístico, econômico, político, esportivo, religioso, com ênfase hoje na violência, no erotismo, na banalidade e no terror. Nesse contexto, o "disco voador", com viés de chacota disfarçada, tem presença certa tanto quanto temas exóticos como o sobrenatural, a mediunidade e os mistérios em geral, por exemplo. Você acredita em alienígenas não porque acredita de fato, mas porque foi adestrado a acreditar - as "provas são incontestáveis". No fundo, você nunca mergulhou no assunto mas passa a acreditar porque "todo mundo acredita" e não quer ficar fora do circuito. Isso vale para todo o resto. Eis a menina dos olhos da mídia em busca da audiência contemplativa, alienada e imbecilizada. 

É aqui que entram em jogo interesses de todo tipo, onde se definem as estratégias de edição e divulgação dos fatos, retransmitindo os sentimentos e as expectativas da sociedade, conduzindo-a ideológica e culturalmente, confirmando o que dizia Umberto Eco: "O homem morre quando o veículo de massa triunfa". Ele nunca erra o alvo. Uma vez fisgado, o sujeito não precisa pensar. A bem azeitada engrenagem do poder age conforme a teoria hipodérmica - a agulha fina inocula seu conteúdo estupidificante tão rápido quanto indolor. O mundo nunca foi dócil com você; ele te recebeu com um tapa no traseiro e continua te espancando até hoje, tanto que você já nem percebe, nem se incomoda, não sente, não protesta e não reage. 

Essa cultura de massa - que molda a opinião pública - é duramente atacada por críticos consagrados como Noam Chomsky, Edgar Morin, Pierre Bourdieu e muitos outros, que acusam os meios de comunicação de serem cada vez mais  subservientes a uma diretriz inimiga da palavra, da verdade e dos significados reais da vida: "Mercadoria ordinária agindo na superfície como barbitúricos, ou mistificação deliberada, desviando o foco para longe da essência dos fatos".

"Cultura é um conjunto de normas, símbolos e imagens que estruturam os instintos e orientam as emoções, fornecendo pontos de apoio imaginários à vida prática e pontos de apoio práticos à vida imaginária", diz Morin.. Para estes veículos, o indivíduo é mero vetor de consumo, dotado de uma mentalidade mediana e notória dificuldade de entender questões minimamente complexas. Em outras palavras, é a depredação da cultura, a anulação da inteligência, a degradação do conhecimento, da moral, da ética. Ética? Ora, a ética...

Agora, pegue tudo isso que você leu,  junte com os textos de A cultura da idiotia,  A dimensãosocial da palavraA espiral do silêncio e A realidade do prazer que a coisa toda fica cristalina. Dedique um sincero esforço nessa leitura. A verdade é que estamos inteiramente à mercê dos fios condutores de um sistema sem ética, sem trégua, que impede nossa capacidade de discernimento, corrói e compromete o capital cognitivo e impõe visões e versões com códigos falsos, deixando-nos a céu aberto sob o jugo de uma complexa e vigorosa doutrinação de convicções da qual não temos nenhum controle. Ainda que necessário e salutar, um olhar mais crítico em relação à sociedade é cada vez mais raro. Esse olhar, cruel por ser realista, permite uma autoanálise bastante fértil de como estamos nos conduzindo, definindo nossas práticas, nossos hábitos e nossos pensamentos, seja como sociedade, seja como indivíduos. 

A imprensa renuncia seu papel de formadora cultural. Os poderes renunciam seu papel de formadores de uma sociedade estruturalmente madura. O cidadão renuncia seu papel de interlocutor de seus próprios interesses e convicções. A quem interessa uma sociedade mal formada e desinformada, pulverizada, passiva, sem autônoma e sem poder decisório? A quem interessa não ter que dar respostas? Responda você. Bourdieu é de uma contundência visceral: "É necessário interrogar-se sobre essa ausência de interrogações. (...) Os mais bem sucedidos efeitos ideológicos são aqueles que não precisam de palavras, e não pedem mais que um silêncio cúmplice".

A saída é usar os mesmos instrumentos de que somos vítimas: Buscar a informação na matriz, selecionar as fontes responsáveis, filtrar dados, aplicar a lógica no exame das questões, ir além do aparente, pensar em tudo que está sendo absorvido. Não basta ler este blog, por exemplo, é preciso confrontá-lo, avaliar o conteúdo, questionar, comprovar fontes. Pensar faz toda a diferença - é o único motor transformador capaz de nos livrar do enredamento e do condicionamento cuidadosamente programados de nossa vida sem o nosso consentimento. É uma relação de forças internas da nossa consciência contra a dinâmica repetitiva e repressiva que dificulta questionar coisas que realmente importam. O filósofo Luiz Felipe Pondé, sagaz observador do cotidiano, faz uma leitura certeira expondo a insustentável pobreza do ser:
A delicadeza, a sofisticação da alma, o amor ao detalhe e a vontade de entender não são atributos das multidões, e aqui reside grande parte de toda a miséria moderna: ser um mundo de grandes números, dedicado a muitos idiotas.
A leitura deste post não se encerra na última linha. Reflita bem sobre tudo, de verdade. Não se deixe levar pelas primeiras impressões da notícia, pela "guerra dos mundos" midiáticos e menos ainda pela caótica e paranoica "rede de intrigas" da malha virtual. Tenha muita cautela na hora de escolher seu canal de informação e não se precipite em emitir opiniões sem cercar-se do conhecimento real dos fatos. Não se engane, aprenda a pensar por si só sem cair na onda do ouvi dizer, fulano falou, deu na TV... Não bastasse a pós-verdade, temos agora que lidar com a "auto-verdade" - pessoas despreparadas cultural e intelectualmente usando a web para despejar uma verborragia irresponsável e delinquente, num assomo de prepotência e narcisismo.

Prometeu roubou o fogo dos deuses - o conhecimento - e o deu ao homem para que ele conduzisse a sua vida com sabedoria e coragem. Não deixe essa chama apagar-se, use-a para iluminar o caminho. Inteligência é um bem valioso demais para ser desperdiçado. Quem não usá-la não pode reivindicar autonomia. 




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CHOMSKY, N. Para entender o Poder. Bertrand Brasil, 2005.
BAUMAN, Z. A Cultura no Mundo Líquido Moderno. Zahar, 2013.
BOURDIEU, P.  O Poder Simbólico. Edições 70, 2017.
LIPPMANN, W. Opinião Pública. Vozes, 2008.
MORIN, E. Cultura de Massa no Século XX. Forense Universitária, 2007.
BARROS Fº, C. Comunicação na Polis. Vozes, 2002.
LE BON, G. As Opiniões e as Crenças. Ícone, 2002.
PONDÉ, L. F. Contra um Mundo Melhor: Ensaios dos afetos. Texto, 2010.

Um comentário:

  1. "A leitura deste post não se encerra na última linha. Reflita bem sobre tudo, de verdade. Não se deixe levar pelas primeiras impressões da notícia, pela "guerra dos mundos" midiáticos e menos ainda pela caótica e paranoica "rede de intrigas" da malha virtual. Tenha muita cautela na hora de escolher seu canal de informação e não se precipite em emitir opiniões sem cercar-se do conhecimento real dos fatos. Não se engane, aprenda a pensar por si só sem cair na onda do ouvi dizer, fulano falou, deu na TV... Não bastasse a pós-verdade, temos agora que lidar com a "auto-verdade" - pessoas despreparadas cultural e intelectualmente usando a web para despejar uma verborragia irresponsável e delinquente, num assomo de prepotência e narcisismo".

    É fato!

    Abraço.

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