Obras

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sexta-feira, 23 de agosto de 2019

FANATISMO DE PEDRA

Que o fanatismo fossiliza o ser nós já vimos, e também que pode ser diagnosticado como doença, e que em ambos os casos só o conhecimento “cura”. Pergunto: O fanático quer ser “curado”? Trocaria a pobre ração pelo banquete de saberes? Se disporia a remover o cabresto encilhado e explorar outras possibilidades? Pouco provável, o ele já foi contaminado pelo vírus do radicalismo. O fanatismo, sabemos também  – e como –, cega a razão, bloqueia o diálogo, dificulta as relações, desagrupa o sujeito da sociedade para reagrupá-lo em um microcosmo identitário. Há uma ínfima distância entre o fanatismo doente e a loucura, a psicopatia. É uma questão de tempo, não de espaço. Também sabemos em quais terrenos o fanatismo se propaga com força mortal: religião, política e esporte, e “mortal” não é figura de linguagem, a história tem nos mostrado isso com todas as dores, cores e odores. O fanatismo não tem freios para potencializar o irracional, como alerta o neurocientista Oliver Sacks:
Uma atmosfera profundamente supersticiosa e delusória também pode favorecer alucinações geradas por estados emocionais extremos, e essas alucinações podem afetar comunidades inteiras. (...) Temos descrições pormenorizadas de alucinações características desses dois estados — alucinações que, em alguns casos, assumiram proporções epidêmicas e foram atribuídas às artes do demônio ou seus lacaios, mas que hoje podemos interpretar como efeitos de sugestão ou até de tortura em sociedades nas quais a religião descambou para o fanatismo.  
Kant também se debruçou sobre a questão do fanatismo e sua proximidade com a loucura. Há um desvario mo modo de compreender certas ideias que produzem tais discursos - o metafísico, o místico, o fanático. Neles está o “desvairado” que se vale de conceitos sem qualquer significado efetivo que dizem respeito a objetos imaginários como se fossem reais. No primeiro caso está o sujeito inventivo com grande produção de fantasia graças à sua imaginação, mas de boa índole e dotes morais preservados. Já o fanatiker eleva aquele entusiasmo ao paroxismo com alto risco de perigo iminente. O o filósofo alemão procura explicar tal fato como um fenômeno da imaginação, uma perturbação no cérebro ou no sistema nervoso. Ele entende que tal explicação só pode se dar através do entendimento de seu significado nos seus diferentes contextos –religioso, científico, ético, etc., ou em termos médico-psiquiátricos como uma disfunção da própria natureza humana.
O problema da limitação do conhecimento ao campo dos objetos, segundo Kant, tem a função de evitar a loucura do pensamento. A razão, dentro do seu âmbito de conhecimento, muitas vezes se vê atormentada pelas questões que não pode resolver, explicar ou evitar impostas pela sua natureza, porque ultrapassam as suas possibilidades. Desse modo, adota obscuridades, contradições, erros e devaneios sem poder discerni-los, justamente por estarem além da experiência objetiva. O palco dessas incertezas chama-se metafísicapresunção da razão ou opinião ilusóriaKant assevera que só a crítica pode cortar pela raiz o fanatismo e a superstição, que se tornam nocivos e perigosos. O processo crítico tem a função terapêutica de expurgar os dogmatismos como desvarios ou discursos de loucura. Só lembrando que crítica, do grego kitikós , é cortar, separar, analisar, decidir, julgar..
Pelo olhar psicanalítico, todo fanatismo tem estreita relação com a fuga da realidade e precede à loucura se o fanático abdicar da sua inteligência, da sua moral e da sua ética. O problema da crença não é a crença em si, mas a inquestionabilidade do seu método, e o seu método está na “certeza” promulgada pelo discurso monológico repetitivo e doutrinário, como uma forma de reação recalcada no inconsciente.
Mesmo reconhecido como um distúrbio psíquico, o fanatismo tem o seu próprio sistema lógico, e quando esse sistema apresenta “mau funcionamento”, é sintoma que a Psiquiatria diagnosticará como loucura ou psicose. Freud, contudo, diz que aquilo que o psicótico paranoico vivencia na própria pele, o parafrênico o faz na pele do outro. Com isso, somos levados a pensar que o fanatismo está mais para a parafrenia (demência precoce, esquizofrenia) que para a paranoia:
Na produção de uma fantasia de desejos e alucinações, ele apresenta traços parafrênicos, enquanto que, na causa ativadora, no emprego do mecanismo da projeção, no desfecho, exibe um caráter paranoide. A análise das parafrenias, como sabemos, tornou necessária a inserção de um estádio de narcisismo, durante o qual a escolha de um objeto já se realizou, mas esse objeto coincide com o próprio ego do indivíduo.
Pudemos, assim, apresentar o fanatismo em suas três instâncias: como um cárcere mental que recolhe o sujeito à aridez do lugar, dando-lhe apenas uma fenda na parede por onde olhar a única paisagem de um mundo acanhado, circunscrito ao alcance de sua já estreia visão. A seguir, a infecção do estado psíquico com a invasão das quimeras e fantasias do imaginário que o fazem perder o contato com a realidade, ou seja, nem fenda mais existe. Por fim, o estágio final da sua ascensão delirante, irracional e ilusória na “certeza de uma missão divina” tutelada por entidades metafísicas para além da compreensão do homem, exceto a dele e de seus seguidores. É quando entramos no sombrio domínio das perturbações mentais – paranoia, loucura, parafrenia, esquizoidia e outras.
Penso que ficou clara a heteronomia do sujeito, isto é, sua completa subserviência a um poder externo obscuro, a incapacidade de reflexão crítica e desobediência a regras éticas, que resultam irresponsabilidade e conduta amoral. É da natureza humana: a razão inclina-se intrínseca e perigosamente para um estado próximo ao delírio, construindo doutrinas metafísicas e autoritárias de ordem delirante, sem sustentação racional e objetiva. Quanto mais o fanatizado se abastece de uma pretensa divindade, mais esvaziado de si mesmo. Quanto mais se curva ao sacerdote², menos ereto anda. Quanto mais pensa ser o centro do universo, mais à margem vive. Quanto mais crê elevar-se aos céus, mais próximo está do malebouge. Quanto mais poder julga possuir, mais esquálido é. Quanto mais se supõe na transcendência, mais doente se torna.
O tema fanatismo acaba aqui, porém, à medida que se agrava resulta consequências nefastas, projetando um rumo civilizatório de espectro assustador. O fanatismo é uma caldeira de alta pressão, passou do ponto, bum! O que virá nas próximas edições não se trata em absoluto de um argumentum ad metum – argumento do medo, “balada do terror” ou a sinfonia do apocalipse. Trata-se sim de um incisivo e cirúrgico exame crítico da realidade feito pelos mais seminais pensadores. Assunto gravíssimo, para gente adulta e corajosa, não chorona, e, de certa forma, também um alerta para as gerações que estão a caminho. 
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¹ ParafreniaTermo que designa certas psicoses crônicas disruptivas como a paranoia, que implica o empobrecimento intelectual de evolução para a demência. Aproxima-se da esquizofrenia pelas construções delirantes com bases paranoicas. É uma expressão em desuso, restrita à Psiquiatria clássica. Freud acabou substituindo o termo pelas concepções de esquizofrenia.
² É significativo verificar que a função original do sacerdote era “oferecer as vítimas em sacrifício às divindades”! Do latim sacer – sagrado e dos, dotis – dotes, bens, doação, entrega.
Oliver Sacks: A Mente Assombrada Cia. das Letras. 2013.
Vários. Revista Filosófica de Coimbra. v. 19, nº 37, 2010.

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