Que o
fanatismo fossiliza o ser nós já vimos, e também que pode ser diagnosticado
como doença, e que em ambos os casos só o conhecimento “cura”. Pergunto: O
fanático quer ser “curado”? Trocaria a pobre ração pelo banquete de
saberes? Se disporia a remover o cabresto encilhado e explorar outras
possibilidades? Pouco provável, o ele já foi contaminado pelo vírus do
radicalismo. O fanatismo, sabemos também – e como –, cega a
razão, bloqueia o diálogo, dificulta as relações, desagrupa o sujeito da
sociedade para reagrupá-lo em um microcosmo identitário. Há uma ínfima
distância entre o fanatismo doente e a loucura, a psicopatia. É uma questão de
tempo, não de espaço. Também
sabemos em quais terrenos o fanatismo se propaga com força mortal: religião,
política e esporte, e “mortal” não é figura de linguagem, a história tem
nos mostrado isso com todas as dores, cores e odores. O fanatismo não tem
freios para potencializar o irracional, como alerta o neurocientista Oliver
Sacks:
Uma atmosfera profundamente supersticiosa e delusória também pode favorecer alucinações geradas por estados emocionais extremos, e essas alucinações podem afetar comunidades inteiras. (...) Temos descrições pormenorizadas de alucinações características desses dois estados — alucinações que, em alguns casos, assumiram proporções epidêmicas e foram atribuídas às artes do demônio ou seus lacaios, mas que hoje podemos interpretar como efeitos de sugestão ou até de tortura em sociedades nas quais a religião descambou para o fanatismo.
Kant também
se debruçou sobre a questão do fanatismo e sua proximidade com a loucura. Há um
desvario mo modo de compreender certas ideias que produzem tais discursos - o
metafísico, o místico, o fanático. Neles está o “desvairado” que se
vale de conceitos sem qualquer significado efetivo que dizem respeito a objetos
imaginários como se fossem reais. No primeiro caso está o sujeito
inventivo com grande produção de fantasia graças à sua imaginação, mas de boa
índole e dotes morais preservados. Já o fanatiker eleva aquele entusiasmo ao paroxismo com alto risco de perigo
iminente. O o filósofo alemão procura explicar tal fato como um fenômeno da
imaginação, uma perturbação no cérebro ou no sistema nervoso. Ele entende que
tal explicação só pode se dar através do entendimento de seu significado nos
seus diferentes contextos –religioso, científico, ético, etc., ou em
termos médico-psiquiátricos como uma disfunção da própria natureza humana.
O problema
da limitação do conhecimento ao campo dos objetos, segundo Kant, tem a função
de evitar a loucura do pensamento. A razão, dentro do seu âmbito de
conhecimento, muitas vezes se vê atormentada pelas questões que não pode
resolver, explicar ou evitar impostas pela sua natureza, porque ultrapassam as
suas possibilidades. Desse modo, adota obscuridades, contradições, erros e
devaneios sem poder discerni-los, justamente por estarem além da experiência
objetiva. O palco dessas incertezas chama-se metafísica, presunção da razão ou opinião ilusória. Kant assevera que só a crítica pode cortar
pela raiz o fanatismo e a superstição, que se tornam nocivos e perigosos. O
processo crítico tem a função terapêutica de expurgar os dogmatismos como
desvarios ou discursos de loucura. Só lembrando que crítica, do grego kitikós , é cortar,
separar, analisar, decidir, julgar..
Pelo olhar
psicanalítico, todo fanatismo tem estreita relação com a fuga da realidade e precede à loucura se o fanático abdicar da sua
inteligência, da sua moral e da sua ética. O problema da crença não é a crença
em si, mas a inquestionabilidade do seu método, e o seu método está
na “certeza” promulgada pelo discurso monológico repetitivo e
doutrinário, como uma forma de reação recalcada no inconsciente.
Mesmo
reconhecido como um distúrbio psíquico, o fanatismo tem o seu próprio sistema
lógico, e quando esse sistema apresenta “mau funcionamento”, é sintoma que
a Psiquiatria diagnosticará como loucura ou psicose. Freud, contudo, diz que
aquilo que o psicótico paranoico vivencia na própria pele, o parafrênico o faz na pele do outro. Com isso, somos levados a
pensar que o fanatismo está mais para a parafrenia (demência precoce, esquizofrenia) que para a paranoia:
Na produção
de uma fantasia de desejos e alucinações, ele apresenta traços parafrênicos,
enquanto que, na causa ativadora, no emprego do mecanismo da projeção, no
desfecho, exibe um caráter paranoide. A análise das parafrenias, como sabemos,
tornou necessária a inserção de um estádio de narcisismo, durante o qual a
escolha de um objeto já se realizou, mas esse objeto coincide com o próprio ego
do indivíduo.
Pudemos,
assim, apresentar o fanatismo em suas três instâncias: como um cárcere mental
que recolhe o sujeito à aridez do lugar, dando-lhe apenas uma fenda na parede
por onde olhar a única paisagem de um mundo acanhado, circunscrito ao alcance
de sua já estreia visão. A seguir, a infecção do estado psíquico com a invasão
das quimeras e fantasias do imaginário que o fazem perder o contato com a
realidade, ou seja, nem fenda mais existe. Por fim, o estágio
final da sua ascensão delirante, irracional e ilusória na “certeza de uma
missão divina” tutelada por entidades metafísicas para além da compreensão do
homem, exceto a dele e de seus seguidores. É quando entramos no sombrio domínio
das perturbações mentais – paranoia, loucura, parafrenia, esquizoidia e
outras.
Penso que
ficou clara a heteronomia do sujeito, isto é, sua completa subserviência a um
poder externo obscuro, a incapacidade de reflexão crítica e desobediência a
regras éticas, que resultam irresponsabilidade e conduta amoral. É da natureza
humana: a razão inclina-se intrínseca e perigosamente para um estado próximo ao
delírio, construindo doutrinas metafísicas e autoritárias de ordem delirante,
sem sustentação racional e objetiva. Quanto mais o fanatizado se abastece
de uma pretensa divindade, mais esvaziado de si mesmo. Quanto mais se curva ao sacerdote²,
menos ereto anda. Quanto mais pensa ser o centro do universo, mais à margem
vive. Quanto mais crê elevar-se aos céus, mais próximo está do malebouge.
Quanto mais poder julga possuir, mais esquálido é. Quanto mais se supõe na
transcendência, mais doente se torna.
O tema
fanatismo acaba aqui, porém, à medida que se agrava resulta consequências
nefastas, projetando um rumo civilizatório de espectro assustador. O fanatismo
é uma caldeira de alta pressão, passou do ponto, bum! O que virá nas próximas
edições não se trata em absoluto de um argumentum ad metum – argumento
do medo, “balada do terror” ou a sinfonia do apocalipse. Trata-se sim de
um incisivo e cirúrgico exame crítico da realidade feito pelos mais seminais
pensadores. Assunto gravíssimo, para gente adulta e corajosa, não chorona, e,
de certa forma, também um alerta para as gerações que estão a caminho.
_____________
¹ Parafrenia: Termo que designa certas psicoses crônicas disruptivas como a
paranoia, que implica o empobrecimento intelectual de evolução para a demência.
Aproxima-se da esquizofrenia pelas construções delirantes com bases paranoicas.
É uma expressão em desuso, restrita à Psiquiatria clássica. Freud acabou
substituindo o termo pelas concepções de esquizofrenia.
² É significativo verificar que a função original do sacerdote era “oferecer
as vítimas em sacrifício às divindades”! Do latim sacer – sagrado
e dos, dotis – dotes,
bens, doação, entrega.
Oliver
Sacks: A Mente Assombrada Cia. das
Letras. 2013.
Vários. Revista Filosófica de Coimbra.
v. 19, nº 37, 2010.
Em alguns casos, é tênue a linha que separa o fanatismo da picaretagem.
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