Obras

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sexta-feira, 30 de agosto de 2019

PÁSSAROS SOTURNOS

Por que subitamente essa inquietude?
(Que seriedade nas fisionomias!)
Por que tão rápido as ruas se esvaziam,
e todos voltam para casa preocupados?
Porque é já noite, os bárbaros não vêm
e gente recém-chegada das fronteiras
dizem que não há mais bárbaros.
Sem bárbaros, o que será de nós?
Ah, eles eram uma solução . 
À espera dos bárbaros
Konstantinos Kaváfis (1863-1933)



Nota importante: Um leitor fez uma observação sobre a edição passada que cabe comentar. Assim como é mínima a distância entre fanatismo e loucura, é tênue também a linha que divide o fanatismo da farsa, da vigarice, da picaretagem, como ele disse. Tem razão, mas preferi não entrar nesse tópico, assim como não falar do fanático “da moda”, o sujeito que entra com volúpia na temática do momento sem ter noção do que está fazendo ali, pelas razões mais diversas, principalmente “aparecer” nas mídias, sentir-se no mundo já que, de outra forma, seria olimpicamente ignorado. Esse é o narcisismo extremado abrindo passagem a pontapés, literalmente. Pauta a caminho.


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Nas últimas três edições tratei do fanatismo em suas várias facetas, e o que você lerá agora e nas próximas semanas analisa a advertência feita por Morin – o temor da barbárie através dos seus operadores: dominação, conquista, fanatismo e intolerância. A literatura é farta, vem de longa data e aumenta à medida que se observam estas indesejáveis aves de maus presságios pairando ameaçadoramente sobre nós. Algumas já pousaram. Com elas, as distopias saem da ficção para o mundo real. O outro se torna um predador camaleônico e móvel que nos assombra a cada manhã. Não precisa ser um outro qualquer, desconhecido e distante, pode ser qualquer um – vizinho, porteiro, passageiro ao lado, amiga, policial, namorado, professor... A barbárie é a extrapolação do fanatismo, a irrupção explosiva e sangrenta da natureza humana crua.

Como você percebeu, vamos desviar do tema habitual porque trata-se de uma reflexão fundamental para se compreender um pouco melhor o momento que vivemos. Vamos falar do eclipse da razão, da dissensão da alteridade e autoverdade como versão contemporânea do estado de natureza. Como sempre, complexidade será a tônica. Recomendo enfaticamente que não disperse nem interrompa a leitura.

Pretendo mostrar da maneira mais clara possível que diversos fatores entrelaçados contribuem para criar um quadro de permanente tensão social, com contornos de uma barbárie em trânsito, através do ressurgimento do estado de natureza do homem. Quero mostrar também que os princípios religiosos estão sendo subvertidos para outras formas de crenças pessoais dessacralizadas, que assumem a função de guias morais individuais e coletivos com forte tônus extremista. A argumentação se constrói e se legitima pela literatura que vai da Antiguidade aos autores do nosso tempo, pela vivência pessoal e exame atento do cotidiano, local e global, produzindo uma crítica dura e sólida com inflexões densas acerca da “natureza bruta do animal humano”. 

O primeiro ponto é que essa “natureza bruta” se mantém viva e inalterada apesar do polimento cultural, social e científico que se produziu na espécie ao longo da história. Este estado de natureza o impede de ver a realidade como ela é, gerando, em decorrência, uma cizânia psíquica entre o real e o imaginário, entre verdade e ficção – vetores inconciliáveis do conflito existencial, da perda identitária e das pulsões de morte. O segundo [ponto] é mostrar que a única solução possível estaria na religião, sendo, ela mesma, porém, também uma ilusão. E, por fim, apontar as possíveis causas e os descaminhos pelos quais o homem decidiu trilhar. No cerne dessa experiência caótica os valores essenciais para a integridade constitutiva do ser estão lentamente se extinguindo: ética e moral. Então não há saída para essa tragédia anunciada? Saída há, mas não creio que será posta em prática, porque nunca foi.

Não há dúvidas de que o mundo passa por um dos períodos mais turbulentos já vividos desde a metade do século 20, com transformações profundas sem precedentes em velocidade e alcance. Política, economia, religião, ciência, arte, educação, cultura, justiça, esporte, tecnologia, relações humanas, comportamento, nada escapa ao abraço ardiloso dessa Quimera voraz insaciável. Pensadores, eruditos, filósofos, cientistas sociais, todos aglutinam o “mal-estar da civilização” de  Freud com a “sociedade do espetáculo” de Debord e os “tempos líquidos” de Bauman para compor um quadro amplo de investigação. Se a soma destes rótulos nos dá uma pista, então estamos dentro de uma sociedade emocional e intelectualmente desequilibrada, desajustada, doente, castrada dos ideais e utopias que um dia sonhou. Se antes o futuro era um farol iluminador, o presente se mostra um balé de sombras fugidias no fundo de uma nova caverna platônica.

Conhecemos (mesmo?) todos os efeitos colaterais desse estado de tensão em que nos metemos, e entender as causas exige um saber multiplicado e multiplicador. Apesar de vivermos uma notável era de avanço científico-tecnológico, com promessas de um futuro rico, temos uma contradição interna insolúvel: Continuamos visceralmente presos a uma mentalidade primitiva mítico-religiosa e ao pensamento mágico/místico ancestral de veneração ao sobrenatural. Não se trata da mentalidade primitiva dada pela psicologia de W. Bion, nem do pensamento selvagem trazido pela por Lévi-Strauss, mas da natureza humana inscrita nas Confissões de Santo Agostinho, nas sociologias d’O Príncipe de Machiavelli e nas páginas de Hobbes, Hume, Kant e Sartre, entre outros notáveis. Para entendê-los, ou ao menos absorver parte de suas ideias, sua mente precisa estar livre dos ranços e vícios com que a cultura popular nos condiciona permanentemente.


Para fechar esta primeira parte necessariamente introdutória e abrir caminho para as próximas, pense sobre o poema de Kaváfis. Se o outro pode tudo, eu também não posso? Sem ele, sei quem sou? Se nossas diferenças são tão iguais, quem é o bárbaro, aquele que deve ser excluído ou aquele que o quer excluir? E, para constar, bárbaro, do latim brabus, do grego bárbaros: Na Grécia antiga, bárbaro era o não grego, ou não helênico: o estrangeiro, estranho, de fora, que não fala a mesma língua, logo, o incivilizado, inculto, “invasor” não no sentido de conquistador, mas daquele que “invade nossa vida e nossos costumes”. 

Um comentário:

  1. "Apesar de vivermos uma notável era de avanço científico-tecnológico, com promessas de um futuro rico, temos uma contradição interna insolúvel: continuamos visceralmente presos a uma mentalidade primitiva mítico-religiosa e ao pensamento mágico/místico ancestral de veneração ao sobrenatural".

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