Obras

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sexta-feira, 13 de setembro de 2019

CIVILIZARBÁRIE-3

No século 5 da era cristã, Santo Agostinho foi um dos primeiros a delinear nossa verdadeira identidade, inquieto que era quando tratava de compreender a condição humana. Não apenas ele é um legítimo representante do espírito de uma época em que se discutia a relação entre fé e razão, como também seu pensamento influenciou fortemente toda uma corrente de filósofos e humanistas sobre a Questio Dei, sendo considerado aquele que simboliza o nascimento da Era Medieval, plantando as sementes filosóficas da civilização ocidental. Santo Agostinho estava em busca da verdade e da luz espiritual. Para ele, o homem é um ser degenerado, perturbado e pecador em sua essência sendo confrontado desde o nascimento com as coisas desse mundo, mundo que é matéria de expiação, sofrimento e dor como fontes de angústia e desespero:
Nesta lamentável inquietação dos espíritos decaídos, que, despidos da veste de tua luz, manifestam as próprias trevas, mostras claramente a grandeza de tua criatura racional; na busca da felicidade, ela só se sacia com tua grandeza, onde encontra repouso – pois que ela não pode bastar-se a si própria. Porque tu, Senhor, iluminarás nossas trevas. De ti vêm nossas vestes de luz, e nossas trevas serão como o sol do meio-dia.
Antes dele, Sócrates já andava às voltas com a investigação acerca do homem, e reconhecia que, nada sabendo sobre si mesmo, não poderia avaliar a questão em toda a sua profundidade. Heráclito (540-470 a.C.) propunha a mutabilidade constante do homem, o que dificultava conhecer a sua natureza, mas é com Platão que o homem é colocado no centro da Filosofia. Depois de Santo Agostinho, poucos se dedicaram a esmiuçar nossas entranhas pela mesma ótica por estarem sob as leis da Igreja e dos preceitos da fé cristã. A questão entre fé e razão só voltaria ao debate com Santo Tomás de Aquino mil anos depois.

No início do século 16, quem toma a palavra é Niccolò Machiavelli. Sua consagrada obra ainda é objeto de estudos e interpretações na Academia por ser um tratado ímpar sobre o Poder, o que ele faz do homem e o que este faz daquele. Ademais, seu discurso disseca sem hipocrisia, cinismo ou ingenuidade o mundo como ele é e o homem como ele é. Por isso mesmo, um autor central para se entender, sem ilusões, as engrenagens que movem o planeta. Para este filósofo e historiador florentino, a maneira pela qual o homem conduz a política é espelho de sua natureza violenta, perversa e traiçoeira, porque o Poder, acima de qualquer outra coisa, assim o demonstra. Mesmo se dizendo cristão, Machiavelli não se ilude com a religião nem com o homem, para quem, sempre que possível, agirá segundo as fraquezas de seu espírito – covardia, dissimulação, crueldade, falsidade. Definitivamente, não estamos bem na foto.

Machiavelli não era o único a pensar dessa maneira, mas morar em Florença, berço do Renascimento e centro culturalmente efervescente, colaborou muito para propagar suas ideias. Ao comentar sua obra, o filósofo Maurice Merleau-Ponty assevera que “O realismo de Maquiavel¹ desmonta concepções clássicas de um homem virtuoso, e isso alterará os modos de compreensão do poder”. Um dos aspectos fundamentais da política é a aparência do ser, conforme afirma o autor florentino:
A natureza dos homens faz com que eles se maravilhem com o que veem, mesmo quando enganados, e geralmente o são, pois os homens, em geral, julgam mais pelos olhos do que pelas mãos, pois todos podem ver, mas poucos são os que sabem sentir. (...) O vulgo é levado pelas aparências e pelos resultados dos fatos consumados, e o mundo é constituído pelo vulgo.
No século seguinte é o trabalho de Thomas Hobbes que sobressai nas discussões sobre o estado de  natureza, cuja  obra, Leviatã, torna-se um marco. Também ele segue a linha dos autores mencionados ao afirmar que o homem é “utilitarista, egoísta e interesseiro”, com predisposição para a explosão – o ser em sua “natureza bruta”,  sem lapidações sociais; cruel, possessivo, beligerante, age a ponto de matar em defesa de sua fé, muitas vezes com requintes de crueldade e sadismo.

O princípio do prazer faz o indivíduo desobedecer questões éticas e morais para atingir o pleno gozo de seus objetivos. Fato é que a busca do prazer está em rota de colisão com a realidade porque, quanto mais esse desejo aflora, mais diminui a capacidade de pensar, ponderar, deliberar. Para o homem, segundo Hobbes, pessoas e coisas têm o mesmo valor como meros instrumentos manipuláveis em benefício próprio. Jean-Jacques Rousseau dirá isso de forma diferente e com maior ardência ao comparar pessoas a bovinos: “Eis assim a espécie humana dividida em rebanhos de gado, cada qual com seu chefe a guardá-la a fim de a devorar”.

Devo ressaltar que foram levados em conta o ambiente histórico de cada autor, que certamente os influenciou na construção das ideias. Ocorre que tais obras são tão  densas, reformadoras  e inspiradoras, que se tornaram,  de certo modo,  fundadoras das Ciências Políticas e Sociais da nascente Era Moderna. A leitura hobbesiana nos põe a pensar que Leviatã, em última análise, somos nós e não apenas o Estado. Se o inferno são os outros, como dizia Sartre, então os outros somos nós também. O inferno somos todos, construindo uma civilização que, em algum momento, não se diferenciará mais da barbárie, será a civilizarbárie. Na próxima semana veremos a distância entre os homens de razão e a desrazão dos homens.


¹ Como critério pessoal, tenho adotado, para autores estrangeiros, a grafia do nome próprio no idioma natal,; no caso de citação ou obra publicada, mantenho como tiver sido empregado.

Um comentário:

  1. "(...) construindo uma civilização que, em algum momento, não se diferenciará mais da barbárie, será a civilizarbárie", algo como o apocalipse mítico, senhor Reis?

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