Obras

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quinta-feira, 19 de setembro de 2019


RAZÃO & DESRAZÃO
A mente é o seu próprio lugar,
e dentro de si pode fazer
do inferno um paraíso,
do paraíso um inferno.
Paraíso Perdido 

John Milton, 1667

Caminhando 100 anos mais, encontramos outro gigante da Filosofia Social, David Hume, um empirista radical, cético, que levou a investigação da mente às últimas consequências com seu ambicioso “Tratado da Natureza Humana”. Crítico de Descartes em relação ao “Eu”, que ele via como uma invenção, e também dos dogmas religiosos, concebia o ser não mais que um ajuntamento de sensações desordenadas, onde a razão era incapaz de orientá-lo nas decisões mais complexas, restando apenas as noções de prazer e dor como balizadores de sua conduta. Essa posição dura lhe custou dissabores, comprometendo sua carreira acadêmica. Porém, assim como outros grandes, seu pensamento ainda hoje é ponto de partida para profundas reflexões. Uma indagação sua é desconcertante e intrigante: Qual é o conteúdo da consciência que se oculta sob as palavras? É um desafio e tanto que poucos ousam responder.

O trabalho de Hume inspirou seu contemporâneo Kant. Reconhecidamente o mais importante nome da filosofia ocidental, Kant conseguiu reunir o racionalismo de Descartes ao empirismo de Hume, propondo um sistema que ficou conhecido como a “revolução copernicana na filosofia”, ao situar o indivíduo como parte integrante do conhecimento e não mais como uma tabula rasa.

Kant dizia que todo conhecimento tem origem nos sentidos, mas defende que o homem tem sim uma razão – a razão pura – que interpreta os dados recebidos. Ele tinha preocupação com a ética e a moral nas ações e relações humanas, e postulava que o mais nobre valor moral do caráter está em fazer o bem por dever, não por um desejo mesquinho. Vale dizer, Kant rompia também com a ideia medieval de que a razão, associada à fé, conduzia o espírito humano a níveis mais elevados. O filósofo prussiano separou a fé da razão, discordando de que a metafísica fosse uma ciência.

Com isso, a Teologia via suas bases sofrerem um abalo considerável, porquanto Kant demonstrava a fragilidade de uma metafísica especulativa incapaz de dar suporte às ações humanas. Na sua argumentação, ele propõe como base para a fé um senso moral inato ao homem – o imperativo categórico – fundamentado na “razão pura” independente dos sentidos. Para ele, o caráter pode ser tanto físico quanto moral; o primeiro define o homem como um ser sensível ou natural, enquanto o segundo é o que o distingue como ser racional dotado de liberdade, um ser autopoético.

As guerras que marcaram o século 20 provocaram o desencantamento do mundo em filósofos sensíveis como Hanna Arendt, Sartre e Lévinas, obrigando-os à revisão dos seus conceitos de maldade inerente ao homem. Havia um consenso de que o indivíduo era inteiramente responsável pelos seus atos, e que, através deles, construía seu caráter – sua essência. A fórmula discursiva do existencialismo ateu de Sartre advoga que a existência precede a essência e que por essa razão estamos condenados a ser livres; condenados porque nos criamos a nós próprios (a autopoiese), e livres porque, uma vez atirados ao mundo, tornamo-nos responsáveis pelos nossos atos, bons ou maus, não podendo jamais responsabilizar os outros  quaisquer outros, inclusive Deus  pelas consequências.

Não muito distante desse pensamento está Emmanuel Lévinas, para quem o homem é a própria alteridade, mas acredita ser seu pensamento absoluto e soberano em relação aos outros. Lévinas não limita sua observação somente aos crentes e religiosos, estendendo seu raciocínio a todos, indistintamente, já que cada um tem seu modo particular de pensar o mundo e seus princípios de fé. Ele entende que isso faz florescer o pensamento totalitário, uma aberração da inteligência que gera o sofrimento, a guerra e o fim da moral e da ética. O mistério da crueldade e da violência está ligado ao pensamento totalizante, que coloca o seu pequeno mundo de crenças como devendo ser o de todos.

A pensadora Hanna Arendt desenvolveu todo o seu discurso político-filosófico nos conceitos do mal e da violência com base nos paroxismos da experiência totalitária. No seu entender, a doutrina totalizante é mais opressora que a escravidão e a tirania, mais destruidora que a miséria econômica e o expansionismo territorial. Ao costurar o mal ao vazio reflexivo, ela propõe uma possível explicação para a violência do homem contemporâneo: ela se viabiliza na banalidade, na injustiça e nas práticas radicais de fúria contra minorias  imigrantes, mulheres, índios, negros, crianças, homossexuais, idosos, credos diferentes e até a natureza. Maldade e violência não é só agressão física, é misoginia, homofobia, pedofilia, desonestidade, truculência, estupidez, hipocrisia.

Traçando um paralelo entre o desenvolvimento da civilização e o amadurecimento libidinal do sujeito, Freud ressalta que quando se inicia um estágio civilizatório, deve-se renunciar à pressão dos instintos, mesmo que se pague um alto preço. A “besta selvagem” que são os impulsos de natureza “bárbara” precisa ser domesticada em benefício da preservação da sociedade. O processo de sublimação das pulsões  – motor da marcha civilizatória  exige sacrifício ao prazer imediato.

Tendo por parâmetro os impactos da guerra, Theodor Adorno vê na barbárie a falência da racionalidade, o que explica como foi possível se chegar ao extermínio absurdo do homem pelo homem  auge da bestialidade. Para ele, mundo abstrato, corpo-máquina e indiferença afetiva são algumas características próprias do adoecimento do contato, do desaparecimento do rosto, da crise da presença:
Entendo por barbárie algo muito simples, ou seja, estando na civilização do mais alto desenvolvimento tecnológico, as pessoas se encontram atrasadas de um modo peculiarmente disforme em relação a sua própria civilização – e não apenas por não terem em sua arrasadora maioria experimentado a formação nos termos correspondentes  ao conceito de civilização, mas também por se encontrarem tomadas por uma agressividade primitiva, um ódio primitivo ou, na terminologia culta, um impulso de destruição, que contribui para aumentar ainda mais o perigo de que toda esta civilização venha a explodir, aliás uma tendência imanente que a caracteriza.
Adorno não está só nessa avaliação áspera sobre o homem, a realidade, a sociedade, a civilização ou a própria humanidade. Você, que está acompanhando esta série, e tem lido ao longo de meses muitas abordagens no mesmo tom, deve ter percebido que o alerta vem soando há tempos  - 2.000 anos, pelo menos - e em todas as direções, mas a surdez é absoluta e a cegueira, contagiante. Sei que você dirá que, mesmo assim, sobrevivemos a tantas catástrofes. É verdade, mas não creio que nossos antepassados tivessem planejado este futuro (presente) para nós, e se estamos sentindo na carne os efeito desse não planejamento, e se temos (temos?) condições de fazer a coisa certa para os nossos filhos e netos, é melhor fazer agora, porque a missa dos excluídos vê crescer seu público. Que pode se tornar maioria. É o que teremos na próxima semana.

Nota: Sobre a edição passada, um assíduo leitor destacou uma frase e engatou uma pergunta. Considerei importante e preparei um texto a respeito, que será publicado no final da série, como um complemento. Peço que aguarde.

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Theodor Adorno, Max Horkheimer. Dialética do esclarecimento. Zahar, 1985.
David Hume. Tratado da Natureza Humana. Ed. Unesp, 2009. 
Emmanuel Lévinas. Entre Nós: Ensaios sobre a alteridade. Vozes, 2005.
Jean-Paulo Sartre. O Existencialismo é um Humanismo. Brasiliense, 1978.

Um comentário:

  1. Muito bom o texto.
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