Obras

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sexta-feira, 27 de setembro de 2019

MISSA DOS EXCLUÍDOS-

O que há de bom ou mau em qualquer crença,
"qualquer" é o modo como se crê.
O bem ou o mal estão no psiquismo
do crente, não na crença.
Fernando Pessoa

Uma vez conhecida a complexa dimensão e a real natureza humana diante desse emaranhado de sentimentos e alternâncias, e para que o ser não sucumba à dor da sua precariedade, é de se supor que devam existir pontos de ancoragem que o auxiliem na travessia desse mar bravio chamado vida. Existem, mas, para saber quais são, devemos recuar um pouco na história. O totemismo é o primeiro deles, pois o totem indica o fenômeno presente em todos os povos primitivos de transformar uma coisa (natural ou artificial) em emblema do grupo social e em garantia da sua solidariedade. Este tema já foi trazido aqui e não há porque retornar (PrimitivaMente Moderna), por isso vou me ater somente ao principal.

O totemismo é um sistema organizador de clãs, tribos e sociedades, pela crença no parentesco entre o grupo e seu tomem como elemento mágico aplacador de algumas incertezas, e desfazer temores e ansiedades quando a ciência é incapaz de aquietar os espíritos primitivos. Assim, os aspectos religiosos/mágicos assumem papel relevante como fontes primárias de conhecimento e especulação, e ordenadores da m oral.  É Durckheim quem diz que os primeiros sistemas de representações que o homem produziu do mundo e de si mesmo são de ordem religiosa. Isso é importantíssimo considerar. Nesse caso, o totemismo é fundamentalmente um elemento distintivo de identidade de um gruo, exercendo a função de unidade e coesão como representação de uma “divindade física – patriarca, líder –, ou espiritual – entes da natureza. O homem depende integralmente dessa instrução religiosa como legisladora da sua sobrevivência espiritual e emocional. Por que a crença religiosa é necessária? Freud investigou: 
As ideias religiosas são proposições, enunciados acerca de fatos e circunstâncias da realidade externa (ou interna) que comunicam algo que o indivíduo não encontrou por conta própria, e que reivindicam que se creia nelas. Visto que informam sobre aquilo que mais nos importa e mais nos interessa na vida, elas gozam de alta consideração. Quem delas nada sabe é deveras ignorante; quem as incorporou aos seus conhecimentos pode se considerar muito enriquecido.
Entretanto, quando a religião também não é suficiente, outras crenças sobem ao pedestal, mesmo ilusórias e dessacralizadas: deuses, anjos, espíritos, astros, oráculos, pastores, cristais, mestres e também alienígenas. Se tais figuras trazem conforto e apoio espiritual ao homem, ele as acolhe e nega tudo o que contrarie seu pensamento ou de sua tribo, turma, grupo ou crença. Daí para o corpo-a-corpo, metafórico ou literal, basta uma faísca. Estamos falando de uma geração de mimados, infantis, acovardados, vítimas de uma sociedade desestruturada a caminho do desastre.

Essa vitimização é parte da “liturgia da exclusão” e produz retração, empobrecimento intelectivo, ausência de cognição lógica, esquiva das reflexões e da crítica, pressa nas respostas. Há um claro declínio cultural sistêmico patrocinado pela bolha epistêmica, pelo viés de confirmação, pela câmara de eco, pela ilusão de profundidade explicativa e pela sala de espelhos, tudo já discutido aqui. O homem está acuado em seu porão num estado anímico de desorientação e esquizofrenia. Esse não lugar no mundo e desbordamento da realidade aniquila a alteridade em seu sentido mais profundo. Você pode fugir da realidade, mas não pode se esconder dela. Dalrymple afirma que as fronteiras entre civilização e barbárie estão se desfazendo muito rapidamente. Estamos no rumo de uma civilização da barbárie.

Esse recolhimento do sujeito ao seu próprio útero, ao eu universo de convicções, se traduz no que ficou conhecido como servidão voluntária ou confiança perversa no carcereiro. Tal condição remete o ser à ambiguidade como recurso de preservação da vida, uma aceitação natural ainda que pareça paradoxal. Podemos substituir homem primitivo por imaturo que no fundo é a mesma coisa.

Ainda sobre ambiguidade, Wilfred Bion observa que nossa mente trabalha como um pêndulo em instâncias psíquicas distintas entre os estados neurótico e psicótico, entre aspectos infantis e adultos e entre elementos sadios e patológicos. Mais ambíguo impossível. Esse balanço caracteriza a mente multissensorial e multidimensional, lidando com as realidades interna e externa conforme o tipo predominante de funcionamento mental, ou seja, na dinâmica psíquica há uma atividade operando neuroticamente e outra psicoticamente. Freud nos dá as chaves definitivas para se entender o homem: 
Compreendemos como o homem primitivo tem necessidade de um deus como criador do universo, como chefe de seu clã, como protetor pessoal (...) Um homem dos dias posteriores comporta-se da mesma maneira. Também ele permanece infantil e tem necessidade de proteção, inclusive quando adulto; pensa que não pode passar sem apoio de seu deus (...) A questão da angústia constitui um ponto no qual convergem os mais diversos e importantes problemas e um enigma cuja solução irá projetar mais luz sobre toda nossa vida psíquica.
Retomando Kant, o homem só pode alçar à sua autonomia pelo esclarecimento, pela superação da minoridademas, inepto que é, está preferindo o caminho inverso ao falsear a história, ao depredar a cultura, dilapidar o saber, sepultar valores pétreos como  ética e responsabilidade, ao abolir o diálogo. Com certeza há de pagar um alto imposto pela sua insanidade. Para quem não se pauta pela razão, qualquer reza serve. Gosto quando Jung diz: “Quem olha para fora, sonha, quem olha para dentro desperta”. Imagine então olhar para si mesmo e despertar... de um pesadelo. É oque vem por aí no último capítulo da série.

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Émile Durckheim. As Formas Elementares da Vida Religiosa. Martins Fontes, 2003.
Claude Lévi-Strauss. A noção de estrutura e etnologia; Raça e  História; Totemismo hoje. Abril Cultural, 1980.
________. O Pensamento Selvagem. Papirus, 1989.
J. G. Frazer. O Ramo Dourado. Circulo do livro, 1978.
Lucien Lévy-Bruhl. A Mentalidade Primitiva. Paulus, 2017.
Jared Diamond. Colapso. Record, 2007.
Nicola Abbagnano. Dicionário de Filosofia. Martins Fontes, 2007.
Bronislaw Malinovski, B, Magia, Ciência e Religião Edições 70, 1984.
Theodore Dalrymple. Nossa Cultura... ou o que restou dela.  É Realizações, 2015.

Um comentário:

  1. "Retomando Kant, o homem só pode alçar à sua autonomia pelo esclarecimento, pela superação da minoridade, mas, inepto que é, está preferindo o caminho inverso ao falsear a história, ao depredar a cultura, dilapidar o saber, sepultar valores pétreos como ética e responsabilidade, ao abolir o diálogo. Com certeza há de pagar um alto imposto pela sua insanidade. Para quem não se pauta pela razão, qualquer reza serve. Gosto quando Jung diz: 'Quem olha para fora, sonha, quem olha para dentro desperta'. Imagine então olhar para si mesmo e despertar... de um pesadelo".

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