Obras

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sexta-feira, 6 de setembro de 2019

QUEM HABITA A SUA PELE? - 2

Quando traçamos a linha do tempo da humanidade, verificamos que todas as tribos, clãs, sociedades e civilizações desenvolveram sua ciência, sua cultura e sua tecnologia próprias, estruturalmente semelhantes ao que se observa no mundo atual. A diferença está em nossa cultura revestida por uma finíssima pele de “modernidade”, que oculta a face primal instintiva de sobrevivência, dominação, força e medo, este como base das pulsões religiosas impregnadas na experiência humana.

Falar em eclipse da razão, dissensão a alteridade e autoverdade é insuficiente para abarcar toda a matéria, por isso é preciso tocar em alguns pontos capitais, ainda que brevemente. As grandes narrativas do passado deram lugar às micro narrativas, isto é, abandonaram-se os projetos de futuro, o ideário social e o comprometimento coletivo em nome de um imediatismo obsessivo e uma nova proposta individual de verdade – a autoverdade: O que se diz, o que se faz, defende e acredita é o texto final para promover a adesão grupal. Disso resulta a dissensão da alteridade, ou seja, o outro só me é útil se e enquanto alinhado com meus propósitos, se não, ignoro, desprezo ou elimino, metafórica ou literalmente.

O sujeito só ouve a si e quer que só a sua voz seja ouvida. Solipsismo compartilhado, lógica burra, monólogo de surdos. Temos aí a diluição dos princípios culturais, éticos e morais, a vida tratada como coisa, clivagem psíquica, distrato social, ruptura dos afetos, colapso da base educacional, eclipse da razão. Trata-se da retomada do estado de natureza do animal humano, de barbárie, enfim. Todo processo civilizatório é também  um processo de barbárie, assinala Walter Benjamin. Pergunto o inverso: Toda barbárie é também um processo de incivilidade? Claro que sim. Se o processo civilizatório é contínuo, a barbárie também é, portanto inevitável, e hoje muito mais midiática, muito mais expositiva e estarrecedora do que jamais foi, ainda que em contextos diferentes. Precisamos entender melhor seu pensamento, bastante atual.

Benjamin (1892-1940) foi um influente pensador alemão do início do século 20 com olhar bem pessimista sobre o futuro, com base nos aspectos políticos, históricos, econômicos e culturais da sociedade. Para ele, é preciso cortar o pavio antes que a faísca atinja a dinamite. No seu entender, a revolução tecnológica na virada do século 19 para o 20 modificou o papel da cultura de massa, dos meios de comunicação e da produção cultural, influenciando na percepção e na assimilação do público, gerando novas formas de mobilização social e contestação política. Percebeu a semelhança com a virada do 20 para o 21? Sua análise estava correta e continua valendo.

Segundo esse filósofo e ensaísta alemão, a tecnologia desenfreada e invasiva substitui as relações interpessoais, fazendo com que o sujeito perca a sensibilidade da experiência direta, autêntica, original. Esse declínio perceptiva torna-o incapaz de apreender as mudanças do ambiente, levando-o a um estado de nudez interior e impedimento da capacidade de comunicação. Tal pobreza da experiência tem consequências. Seu pensamento está aqui resumido ao máximo, pelas razões que você já sabe: 
Ele deseja libertar-se de toda experiência, aspira a um mundo em que possa assentar tão claramente sua pobreza externa e interna, que algo de decente possa resultar disso (...) Sim, é preferível confessar que essa pobreza não é mais privada, mas de toda a humanidade. Surge, assim, uma nova barbárie. 
Que estamos envolvidos por uma imagosfera asfixiante também não há nenhuma dúvida; a imagem tornou-se mais importante que o real, em qualquer circunstância. Vivemos um jogo de aparências onde imperam mentira, hipocrisia, falsidade, fake news, turbinadas pelas redes sociais em todas as plataformas numa multiconectividade avassaladora, um lugar simbólico de não pertencimento. Vários estudos apontam os danos dessa imersão desordenada no universo virtual mais real que o real: Desconstrução e reconstrução identitária, narcisismo compulsivo, fuga por inadaptação à realidade, hipervalorização progressiva do repertório imaginário, autocomiseração, imaturidade, covardia. Covardia moral neurótica, como diz Freud. Essa radiografia pode parecer, num primeiro olhar, devastadora de nossas melhores virtudes, quando é, de fato, retrato fiel, porque o exame crítico é e deve ser inelutavelmente rigoroso, imune a paixões, se quiser desvelar a face humana sem maquiagem. A pergunta-chave desta série, Quem habita a sua pele?”, traz uma resposta irrefutavelmente assustadora: Há uma besta-fera enjaulada faminta por um pedaço de carne, que não a sua.

Ainda dentro do ambiente digital, a celeridade e elasticidade de informação geralmente sem filtro atropela a reflexão e a interpretação judiciosa dos fatos; Mark Bauerlein chama de “gratificação instantânea”, resultando na perda de contexto e historicidade, na atrofia de ideias e aporte contínuo de conflitos. Seu estudo é um recorte bastante sintonizado com os de países como Holanda, Dinamarca, China, Portugal, Espanha e Inglaterra, por exemplo, num total de 14 levantamentos independentes. É quase um consenso global.

Uma das conclusões apresentada nestes trabalhos é que a juventude de maneira geral, mas em especial a americana, perdeu totalmente o interesse pelos livros, pela literatura e pelo saber amplo; os estudos indicam ainda que esse decréscimo de inteligência começou a ser demarcado a partir dos últimos 40 anos, crescendo no início deste século, período em que a internet conquistou seu espaço. Não é mera coincidência. A correlação é inegável, segundo o consenso dos autores, que encontra eco nos trabalhos da neurocientista britânica Susan Greenfield, da Oxford University, para quem o admirável mundo novo digital está alterando significativamente e de forma inédita o nosso cérebro. Por óbvio, nossas atitudes, por óbvio, nossa auto-imagem. Aonde tudo isso nos leva? Semana que vem eu conto. Não perca o fio.

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BAUERLEIN, M. The Dumbest GenerationTarcher/Penguin, 2017.
GRENFIELD, S. The Private Life of the Brain. Penguim, 2002.

Um comentário:

  1. "Uma das conclusões apresentada nestes trabalhos é que a juventude de maneira geral, mas em especial a americana, perdeu totalmente o interesse pelos livros, pela literatura e pelo saber amplo; os estudos indicam ainda que esse decréscimo de inteligência começou a ser demarcado a partir dos últimos 40 anos, crescendo no início deste século, período em que a internet conquistou seu espaço".

    É, senhor Reis, os tempos mudam, as coisas se transformam.

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