Obras

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quinta-feira, 14 de novembro de 2019

A DIFERENÇA  É SER HUMANO

O homem é uma corda esticada
entre o animal e o super-homem,
uma corda por cima do abismo.
Nietzsche

A frase é do poeta romano Publius Terentius (185-159 a.C.): “Sou homem, e nada do que é humano me é estranho”¹. Na linha do que você leu aqui nas últimas semanas, a chave do problema continua sendo o ser humano e a interpretação que habitualmente é dada a essa expressão – humano. Está bastante claro que o que Terentius quis dizer é que todos os atos praticados pelo homem não o surpreendem, portanto, é incorreto dizer “isso é desumano” ou “isto é uma selvageria” ao se referir a algum gesto que pareça inconcebível ter sido autoria do homem: um massacre, uma chacina, um genocídio, um crime hediondo. Animais não fazem esse tipo de coisa, só o homem. Só o humano, só o animal humano.

Outro dia postaram nas redes sociais a foto de um indígena caracteristicamente pintado e adornado, com o seguinte texto, imaginado ser politicamente correto: “Selvagem não é o habitante da floresta, selvagem é quem a destrói”. Embora seja possível entender o espírito da mensagem, ela está semântica e conceitualmente errada. Selvagem é sim o habitante das selvas, das florestas; etimologicamente, tem a mesma raiz latina para selvícola, silvícola, selvático, silvestre, por extensão rude, rústico, o que não significa que seja violento, ignorante, um bárbaro sanguinário. O selvagem pode ser inculto para os padrões do homem “civilizado, mas ele preserva sua cultura, sua lógica, seus valores e sua ética.

Não, selvagem não é quem destrói a floresta, queima as matas, derruba árvores, caça por lazer e mata por prazer, envenena o meio ambiente. Quem faz tudo isso e mais um pouco é o humano branco mesmo, ele sim cada vez mais truculento, estúpido, hostil, cruel, selvagem no sentido que ele entende. A imagem que encima o post mostra as muitas semelhanças entre o animal humano e o – este sim – selvagem: a face da dor, o medo, na luta pela sobrevivência, na defesa do território e da prole, na fome, na disputa pela chefia do bando. Os impulsos anímicos são organicamente os mesmos, o olhar  é o mesmo, o grito é o mesmo, a impotência ante a tragédia é a mesma. Somos todos animais. 

Organicamente semelhantes mesmo. A diferença genética entre o homem e o macaco Bonobo e o chimpanzé é de apenas 1%. Segundo os pesquisadores que fizeram o mapeamento genético destes animais, analisando as características de ambos será possível, em futuro próximo, descobrir como o lado mais sombrio da nossa natureza evoluiu. Esse é o dado empírico que está faltando, porque o antropológico sócio-comportamental já é conhecido.

Nossa configuração cerebral apresenta, em sua região mais interna, o Complexo Reptiliano, ou cérebro basal, o mais primitivo legado animal que carregamos até hoje. É ali que residem nossos instintos primais de sobrevivência – reprodução, autodefesa, fuga, fome, etc.  e dos processos automáticos de respiração e ritmo cardíaco. Além disso, determina muito do nosso comportamento repetitivo e intuitivo. Um detalhe fundamental é que, em certo sentido, o Complexo R é paranoico e reativo, pois para ele tudo é ameaça e perigo. É nessa região também que crenças e convicções estão profundamente enraizadas, e por essa razão são facilmente manipuláveis e controláveis pela intimidação e pelo medo. As técnicas de marketing e as doutrinações religiosas sabem disso e exploram com sucesso essa fraqueza. 

O historiador israelense Yuval Harari, em Homo Deus, diz que na maioria das línguas semitas, “Eva significa “serpente” ou “serpente fêmea”, nome que refere um mito animista arcaico segundo o qual as serpentes são nossas antepassadas. Para ele, os autores do livro do Gênesis podem ter preservado um resquício das crenças animistas ao escolher o nome de Eva, tendo o cuidado de ocultar outros traços. Linguística à parte, e voltando à neurociência, não passamos de primatas com cérebro maior que o deles mas com o mesmo número de neurônios. A diferença está em como processamos essas informações e o que fazemos com elas.

A ciência não sabe responder como se dá essa síntese informacional, em outras palavras, de onde vem o pensamento. Mistério insondável. Somente 16% dos neurônios situam-se no córtex – a área do pensamento, o “setor nobre”dessa magnífica fábrica de ideias; a maior parte deles opera lá onde você deve estar pensando, no sistema reptiliano! Como diz a Dra. Herculano-Houzel, “Nosso cérebro é um cérebro ordinário de primata com a distinção de ser o maior cérebro de primata que consegue ter mais neurônios corticais. (...) A evolução humana recente é uma história do aumento do número de neurônios no córtex e de como levamos cada vez mais tempo para chegar à vida adulta independente³. O sublinhado propõe uma reflexão mais demorada.

Selvagem é o animal da selva, o homem da selva, o fruto da selva. Quando o humano não age como tal, o que ele é? É um animal que perdeu seu único dom  a lucidez. Culpa dos deuses? Quem sabe, afinal, quando eles querem destruir o homem, começam por lhe tirar a razão, diz o provérbio. As diferenças tendem a diminuir até que, em algum ponto, desaparecem. Ao que chamamos de pós-modernidade não seria antes um neo-barbarismo? Não quero parecer cruel, mas o avesso do espelho revela que teu rosto e voz escondem um animal acuado com um rosnar preso. Não é preciso muito para libertá-lo. A “corda” mencionada por Nietzsche é frágil e tensionada no limite de sua resistência. Inspirado pelo poeta inglês T S. Elliot², eu diria que o fim dos tempos pode vir acompanhado não de um clarão cegante, mas de um gemido, um choro, um suspiro. Ou um urro.


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¹  Homo sum: nihil humani a me alienum puto.
²  O Poema (estrofe final): Assim expira o mundo, não com um estrondo, mas com um suspiro.
³  Suzana Herculano-Houzel. Longevity and sexual maturiry across species with number of cortical neurona, and humans are not exceptiom.The Journal of Comparativ Neurology 23/10/2018.
 https://onlinelibrary.wiley.com/doi/abs/10.1002/cne.24564 Acessado em 29/09/2019.
Kay Prüfer, et alTje bonobo genome compared with the chimpanze and human genomes. Nature, 2012.

2 comentários:

  1. As palavras do cronista Paulino Azurenha (1860-1909) são de 1906 e parecem indicar que a "neo-barbárie" não é tão neo, seu Reis:

    "A sociedade moderna apenas usa e abusa de um verniz de civilização. A pretexto de originalidade, de exotismo, de independência, de liberdade de preconceitos e de convenções, cometem-se os maiores atentados contra a moral, os bons costumes e educação dos sentimentos, fazendo, paulatinamente mas seguramente, reverter, descambar a humanidade para a confusão grosseira da barbárie, de que, a muito custo, a cultura da Renascença fê-la emergir".

    Abraço.

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