Obras

Obras

sexta-feira, 22 de novembro de 2019

A QUEM INTERESSA?
[…] qualquer um que fizer o mínimo esforço
poderá ver o que nos espera no futuro.
É como um ovo de serpente.
Através das membranas finas
 pode-se distinguir o réptil
já perfeitamente formado.
O ovo da serpente
(Ingmar Bergman, 1977)
Cá estamos nós às portas da terceira década do século 21. Incrível a humanidade ter chegado tão longe sendo como é, viciada em conflitos sangrentos sem fim e se adaptando a mudanças climáticas e ambientais drásticas e duradouras. Mas ela chegou. Entretanto, isto não significa que irá atravessar o próximo milênio diante dos tons sombrios que tingem o futuro. Civilizações desapareceram, impérios sucumbiram à ganância, muito da história virou escombro, muito da memória apagou-se no limbo e com ela foram-se as lições para não cometermos os mesmos erros. Continuamos errando. Os sinais são muitos, cristalinos, intensos, tocam-nos as veias, agridem os sentidos, ferem o espírito, toldam a razão. E seguimos errando. A quem interessa a ignorância?

Em momento algum de sua jornada o homem teve acesso a tanto conhecimento e de modo tão rápido e tão abrangente. Sua capacidade inventiva não conhece barreiras, multiplica-se em todas as direções onde, literalmente, o cosmo é o limite. Tudo seria de fato um presente dos deuses se o homem não se visse, ele mesmo, um deus. A mesma mão que traz a vida se acha no direito de tirá-la. A mesma voz que educa e transforma, mente e deforma. A letra que constrói é a mesma que destrói. Virtuoso hoje, impiedoso amanhã, lúcido no nascente esquizofrênico no poente. Poeta do amor, profeta do terror. É essa ambiguidade que reproduzimos. O que não muda é a inconsciência da covardia. Em terra arrasada não há rei. A quem interessa a cegueira?

Vivemos tempos estranhos num mundo em desalinho, afundados cada vez mais na indigência moral, ética e cognitiva, no vazio intelectual. O sujeito que acredita em ETs faz troça do terraplanista, são tolos iguais do mesmo circo. Incoerência de mão dupla. Religiosos matam religiosos é intolerância em nome do Pai. O beato do domingo prevarica no sábado - hipocrisia abençoada. O animador de festa infantil molesta a sobrinha. Canalhice doentia. Na missa condena a pedofilia, à noite seduz o noviço. Casa de Deus, leito do capeta. Repudia o racismo mas muda de lugar no ônibus, é cinismo na pele. Insulta no cruzamento e para em fila dupla, é o cretino habilitado. Poderoso corrompe juiz que coage advogado que alicia senador que suborna delegado que banca bandido que rouba poderoso. Vossas Excrescências no baile de máscaras esgarçando o tecido social. Chagas abertas incuráveis. A quem interessa o colapso?

Estamos falando de patifaria em família, de súcia de velhacos, aliança de conchavos, sindicato da corrupção, máfia da impunidade. Estamos falando de improbidade consensual, antro de canalhas, cartel da delinquência, confraria de larápios, porque conluio, omissão, desrespeito, sonegação, negligência, mentira, ganância e indiferença são outras faces da violência. Divina comédia pós-moderna. Genocídio moral e ético, crise de identidade, conexões disruptivas, interesses parasitas. Estamos falando de falência da educação, da dignidade, da decência e da responsabilidade. A quem interessa a miséria?

 A inteligência, alicerce da sociedade, está comprometida pela infiltração corrosiva da idiotia, da ignorância, da estupidez crônica que solapa agressiva e ostensivamente os pilares da melhor formação humanista e da ordem civilizatória. As instituições, que deveriam fortalecer e sustentar a cidadania, tropeçam na própria incompetência e boçalidade. A saúde, mais doente que os doentes que deveria assistir. Escolas ensinando a não aprender, Segurança passando insegurança, Justiça praticando injustiça, a verdade escamoteada, a mentira oficializada. Podridão polimórfica. Rede de simulacros, vomitório tóxico de falsidade, feitiçaria, promiscuidade cultural, truculência ideológica e social. Onde está o germe que definha o ser? A quem interessa o caos?


Um comentário:

  1. Que pancada!

    Quando foi diferente, seu Reis? E sobre a milenar expressão "vale de lágrimas", que designa o cenário deste mundo? Se levarmos em conta que o cristianismo, por exemplo, tem dois mil anos e trata exatamente dessas lúcidas constatações, chegaremos à conclusão de que estamos realmente e inapelavelmente perdidos - ou não! - talvez seja essa a nossa única ou cabível realidade.

    Alberto Allen Pereira de Sequeira Bramão disse que "o prazer de viver consiste em aceitar a vida sem a analisar. O homem que a analisa estraga a felicidade, como as crianças estragam as bonecas, para verem o que têm dentro", o que equivale dizer que a ignorância é santa.

    Abraços.

    ResponderExcluir