Obras

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sexta-feira, 29 de novembro de 2019

SINGULARIDADES

Singulares. Essa é a palavra-chave que define o nosso planeta e a vida nele existente. Tudo é ímpar, exclusivo, irreplicável e irrepetível, da sua formação aos dias atuais, os cataclismos que o bombardearam sem trégua durante milhões de anos, as convulsões geológicas, a extinção em massa de animais e o surgimento de novas espécies por diversas vezes, até a última geração, que inclui a nós humanos. Esse é o tema do documentário One Strange Rock¹ que traz, ao longo de dez episódios, uma vasta gama de informações atualizadas sobre a gênese do mundo e suas possibilidades.

O fio condutor da série é a vivência individual de oito astronautas que passaram, no total, mais de 1000 dias no espaço, além de pesquisas as mais diversas em 45 lugares da Terra, demonstrando, de modo inequívoco, que o ecossistema planetário atua em uma malha de extrema complexidade, muito mais do que jamais poderíamos imaginar. Estudos sobre o desenvolvimento de espécies marinhas exóticas, o ciclo migratório da borboleta Monarca e dos morcegos, o perverso processo evolutivo das morsas, o desmoronamento de paredões de gelo, o surgimento das ilhas de coral, os “rios suspensos” da Amazônia, as tempestades de areia dos desertos africanos, a importância das diatomáceas² e das fezes do peixe-papagaio, tudo isso e muito mais operando em conjunto para manter o equilíbrio da vida no planeta, um concerto de primeira grandeza para uma vida única.

O ponto fundamental da série para o qual chamo a sua atenção, é demonstrar que a vida só surgiu e prosperou graças a uma cadeia caótica de acidentes e contingências astronômicas especiais que não se deram em nenhum outro lugar em condições semelhantes. O universo é composto de bilhões de corpos viajando espaço afora no eterno silêncio da noite fria dos tempos, onde cada astro tem uma topografia peculiar com montanhas, crateras, vulcões e gelo, sofrendo colisões e explosões o tempo todo. Neles não há baleias, golfinhos, ursos, corujas, esquilos, cavalos, lobos, vagalumes, felinos e répteis. Não vicejam rosas, orquídeas, jasmins, girassóis, tulipas, cogumelos, jatobás e coqueiros. Não germinam batatas nem bananas, morangos, uvas, alface, nozes e milho. Não há cidades, estradas, fábricas, canaviais, antibióticos, espaçonaves e foguetes. Não existe música, cinema, arte, ciência, livros, filosofia. Vida, talvez microbiana e só. Vida complexa e inteligente, só aqui, na Terra, essa rocha estranha. Porque é singular. Porque somos singulares.

A série é uma aula de biologia ao traçar o caminho dos primeiros seres vivos, dos microscópicos dotados de um “cérebro” rudimentar com algumas centenas de neurônios ao cérebro humano com seus 86 bilhões. É esse tecido neural o evento mais extraordinário, que nos proporciona a consciência e a capacidade de construir ferramentas e obter recursos para superar os obstáculos que impediriam a continuidade da espécie. A possibilidade de que tal prodígio tenha se repetido pelo universo é zero, ao passo que a vida unicelular, ainda que não  encontrada até o momento, seja bastante provável. Com belíssimas imagens, ótimo roteiro e conteúdo científico de qualidade, recomendo vivamente este documentário, que tem a mesma proposta narrativa de Cosmos, produzida e apresentada com grande sucesso por Carl Sagan nos anos 80. Uma celebração ao planeta, ao homem, à inteligência e à vida.

Singular é acreditar que o universo esteja povoado de civilizações tecnologicamente avançadas que nos visitam há milênios, que federações intergalácticas nos protegem contra iniquidades que comprometam a “harmonia cósmica”, que cientistas alienígenas sequestram homens e mulheres para monitoramento de nossa evolução como se a Terra fosse seu laboratório genético. A sério, isso não é singular, é bisonho, é desinformação e ignorância, trapaça vil. Esteja certo de que, quanto mais debaixo do meu guarda-chuva você ficar, mais abrigado estará dessa tempestade interminável de bobagens e insensatez.

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¹ Direção: Darren Aronofsky. Netflix, 2018.
² Microalgas unicelulares que se reproduzem em águas frias - mares e lagos, constituindo parte importante do fitoplâncton, alimento primário na cadeia alimentar aquática. Além disso, processam a fotossíntese pelo metabolismo, retirando dióxido de carbono da atmosfera e devolvendo oxigênio. Mais da metade do ar que você respira vem dessa fonte.

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