Obras

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sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

VENTANIA

“Que importa o saber se a demanda é por crença?” “Crença e opinião sempre se sobrepõem ao conhecimento”. Estas duas frases do pensador francês Gustave Le bon (1841-1931), fundador da Psicologia Social, são a chave para entender algumas de suas obras, referências obrigatórias nessa área na hora de abordar o assunto. Essa breve introdução é o gancho para o que iremos debater a partir de agora  crenças e opiniões , temas recorrentes por aqui porque o blog funciona como um bom boticário, gotejando pacientemente a substância até ser absorvida pelo corpo. Isso se deve dada a ventania causada pelos últimos posts, que parece ter incomodado alguns, o que não é surpresa.

O recado dado em Ficar ou Fazer aborreceu o leitor, que me excluiu da sua rede de contato desde então e aparentemente não tem acessado o blog. Não é a primeira vez que sou excluído por dizer a verdade, não será a última. Foi dito, na ocasião, que haveria uma tentativa de debate, que se confirmou, apesar do jovem demonstrar clareza de raciocínio, desenvoltura na argumentação, lucidez e ponderação. Seu gesto comprova o que foi colocado no último post, que inteligência não combina com crença. O exemplo se aplica a outros, mas não a todos. Há quem conviva com as divergências, ouve, dialoga, procura formas de entendimento, como a leitora espírita que, mesmo discordando do texto, não arrefeceu a crença nem estremeceu no afeto. Alguns trechos pinçados da obra de Le Bon, As Opiniões e as Crenças (1895) ajudam a caminhar pelos meandros do comportamento humano e conhecer a psicologia das massas. Uma obra atualíssima, indispensável e esclarecedora. A partir daqui, a palavra é dele. Os sublinhados são meus. Preparei uma trilogia para expor razoavelmente a questão, longe de esgotá-la.

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O problema da crença, por vezes confundido com o do conhecimento é, entretanto, muito distinto dele. Saber e crer são coisas diferentes, que não têm a mesma gênese. A sua solução dá-nos a chave de muitas questões importantes. Como, por exemplo, se estabelecem as opiniões e as crenças religiosas ou políticas? Por que se observam, simultaneamente, em certos espíritos, ao lado de elevadíssima inteligência, superstições muito ingênuas? Por que é tão fraca a razão para modificar as nossas convicções sentimentais? Sem uma teoria da crença, essas questões e muitas outras ficam insolúveis. Somente com o auxílio da razão, não poderiam ser explicadas. O domínio da crença sempre pareceu repleto de mistérios. É por isso que os livros sobre as origens da crença são tão pouco numerosos, ao passo que são inúmeros os que se referem ao conhecimento.

As raras tentativas empreendidas no sentido de elucidar o problema da crença bastam, aliás, para mostrar que ele tem sido pouco compreendido. Aceitando a velha opinião de Descartes, os autores repetem que a crença é racional e voluntária. Um dos objetivos desta obra será precisamente mostrar que ela não é voluntária nem racional. A idade moderna contém tanta fé quanto tiveram os séculos precedentes. Nos novos templos pregam-se dogmas tão despóticos quanto os do passado, e eles contam fieis igualmente numerosos.

Os velhos credos religiosos que outrora escravizavam a multidão são substituídos por credos socialistas ou anarquistas, tão imperiosos e tão pouco racionais como aqueles, mas não dominam menos as almas. A igreja é substituída muitas vezes pela taverna, mas aos sermões dos agitadores místicos que aí são ouvidos, atribui-se a mesma fé. A fé num dogma qualquer é, sem dúvida, de um modo geral, apenas uma ilusão. Cumpre, contudo, não a desdenhar. Graças à sua mágica pujança, o irreal torna-se mais forte do que o real. Uma crença aceita dá a um povo uma comunhão de pensamentos de que se originam a sua unidade e a sua força. Sendo o domínio do conhecimento muito diverso do terreno da crença, opô-los um ao outro é inútil tarefa, embora diariamente tentada. Um dos mais constantes caracteres gerais das crenças é a sua intolerância. Ela é tanto mais intransigente quanto mais forte é a crença. Os homens dominados por uma certeza não podem tolerar aqueles que não a aceitam.

As leis que regem a psicologia da crença não se aplicam somente às grandes convicções fundamentais, que deixam uma marca indelével na trama da história. São também aplicáveis à maior parte das nossas opiniões quotidianas relativamente aos seres e às coisas que nos cercam. A observação mostra que, na sua maioria, essas opiniões não têm por sustentáculos elementos racionais, porém elementos afetivos ou místicos, em geral de origem inconsciente. Se nós as vemos discutidas com tanto ardor, é precisamente porque elas pertencem ao domínio da crença e são formadas do mesmo modo. As opiniões representam, geralmente, pequenas crenças, mais ou menos transitórias.

Seria, pois, um erro supor que se sai do terreno da crença, quando se renuncia às convicções ancestrais. Sendo as questões suscitadas pela gênese das opiniões da mesma natureza que as relativas à crença, devem ser estudadas de modo análogo. Muitas vezes distintas nos seus esforços, crenças e opiniões pertencem, no entanto, à mesma família, ao passo que o conhecimento faz parte de um mundo inteiramente diverso. Como se explica esse estranho poder das crenças? De quais elementos psicológicos surgem esses mistérios? 


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A Psicanálise, com Freud, ilustra de modo eloquente que o ser humano é um animal de ilusões, um corpo desejante que tem, como constituintes da sua própria condição, carência e vazio. Em vista disso, ilusões e fantasias estão sempre à mão a preencher esses vácuos na construção dos mais “elevados” edifícios da cultura humana. Para Freud, a experiência religiosa, a fé, é uma forma compensatória e salvacionista ante um mundo real perverso, onde a religião acaba por se tornar uma neurose coletiva:
[...] aquilo que o homem comum entende como sua religião, o sistema de doutrinas e promessas que de um lado lhe esclarece os enigmas deste mundo com invejável perfeição, e de outro lhe garante que uma solícita Providência velará por sua vida e compensará numa outra existência as eventuais frustrações desta (...) Essa Providência o homem comum só pode imaginar como um Pai grandiosamente elevado. Apenas um ser assim é capaz de conhecer as necessidades da criatura humana, de ceder a seus rogos e ser apaziguado por seus arrependimentos. Tudo isso é tão claramente infantil, tão alheio à realidade, que para alguém de atitude humanitária é doloroso pensar que a grande maioria dos mortais nunca se porá acima desta concepção de vida. Ainda mais vergonhoso é constatar que um bom número de contemporâneos, embora percebendo como insustentável essa religião, procuram defendê-la palmo a palmo, numa lamentável retirada.
[continua]

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Sigmund Freud, Por que a Guerra? Cia. das Letras, São Paulo, 2013.

Um comentário:

  1. Sou ateu, graças a deus, seu Reis!

    "Ainda mais vergonhoso é constatar que um bom número de contemporâneos, embora percebendo como insustentável essa religião, procuram defendê-la palmo a palmo, numa lamentável retirada".

    Abraços.

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