Obras

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sexta-feira, 6 de dezembro de 2019

EU NÃO FALO JAVANÊS



A menos que você saiba javanês, o título fica intraduzível. Do que estou falando? O título é inspirado no conto de Lima Barreto “O Homem que Sabia Falar Javanês”, a história de um homem que não falava javanês, mas como precisavam de um professor desse idioma, ele se dispôs a ensinar, já que os alunos desconheciam a língua. Barreto faz uma crítica bem-humorada sobre os falsos intelectuais, sujeitos que se arvoram em conhecimentos que não têm mas pensam ter, ou ainda pior, sabem que não sabem e mesmo assim perpetram a farsa. Você sabe para quem é o recado.

Entretanto, a bem da verdade, há situações nas quais o discurso é incompreensível de fato porque o orador tem amplo conhecimento da matéria, mas esquece que o público não, isto é, fala apenas para os seus pares. Por exemplo, veja o argumento de um magistrado falando “juridiquês”:
Vossa Excelência, data maxima venia, não atinou com as entranhas meritórias doutrinárias e jurisprudenciais em suas minudências acopladas na inicial, que caracterizam, hialinamente, o dolo sofrido.
Você pode até se esforçar para tentar entender o que diz o filósofo ou o físico, o químico ou o biólogo, o sociólogo ou o cientista da religião, mas, se não tiver alguma familiaridade com o assunto, sua compreensão fracassará. É o que popularmente se diz isso é grego para mim”. Ou javanês. Mas o que nos interessa discutir é o falso conhecimento  ou a falta mesmo  de certos indivíduos, que se propõem a dissertar sobre aquilo do qual não fazem a menor ideia do que seja. A situação piora quando o público tem muito interesse no que está sendo exposto mas é completamente leigo. Aí o desastre é total. Os temas que se encaixam nesse contexto são os esotéricos, os pseudo científicos, os místicos por excelência, que despertam ou estimulam o desejo natural de se saber mais sobre o imponderável, o inacessível, o “transcendente” e o maravilhoso

Veja, por exemplo, se alguns deles fazem parte do seu cotidiano: universos paralelos, hiperespaço, multiversos, portais dimensionais, engenharia reversa, cosmologia, grande colisor de hádrons, Bolha de Alcubierre, física quântica, propulsão iônica, teletransporte, vórtices energéticos, transcomunicação, parapsicologia e, claro, ufologia. Não, não estão na sua agenda de estudos e pesquisas, quando muito, um interesse momentâneo que flerta com o entretenimento ou a mera curiosidade. Já os doutos especialistas transitam com invejável naturalidade em palestras e cursos avançados que seduzem (seductio – afastar da realidade pelo jogo de palavras), iludem (illusio– burla, logro) e encantam (in cantare – usar palavras mágicas, enfeitiçar) os ouvidos predispostos ao feitiço.

Não há como não nomear essa patranha indecente de delinquência intelectual, analfabetismo cognitivo e atrofia mental. Já não se trata mais de uma convicção, mas de alienaçãodesrespeito, mistificação, obscurantismo e burrice, com alto índice de psicopatia. Quando o tema agrada, a audiência se empolga mesmo não entendendo uma vírgula do que está sendo dito, simplesmente porque é o que quer ouvir. Convenhamos, não é nada louvável ser aplaudido por uma plateia de ineptos.

Você me perguntará: Mas estes senhores não podem ter conhecimento legítimo do assunto que ministram? Eu asseguro que desse conteúdo eles não têm a menor noção do que estão falando porque são, todos, apedeutas. Suas biografias denunciam que mal sabem amarrar os próprios sapatos, quanto mais chegar à pagina três de qualquer daquelas questões; no entanto, arrotam prepotência e soberba acantonados em sua ignorância, atrás de aplauso e notoriedade com intenções mais que suspeitas. A exploração da boa-fé alheia e a paranoia cretina desses sujeitos não têm freios nem limites. Essa gente fala javanês.

A estapafúrdia tese da Terra Oca colide com a da não menos extravagante Terra Plana, e juntas geram a emergente e surreal Terra Convexa! Hiperespaço, portais dimensões e universos paralelos são fascinantes incursões ficcionais, o mesmo valendo para teletransporte, transcomunicação e outros devaneios em nome da ciência do futuro. O que se tem é um caldo de enunciados disparatados sem nexo, sem lógica e sem razoabilidade. O que se tem é um corpo cada vez mais doente, desfigurado, acéfalo, despedaçado e agônico. É por essas e outras que este blog existe, a sua função é trazer informação assentada em literatura da melhor qualidade, na experiência de longa data, e regido pelo senso de responsabilidade.

Ainda que meus textos possam ser eventualmente mais complexos que o esperado, eles primam pela honestidade de propósito: esclarecer, informar, depurar e provocar. Sim, com frequência faço críticas duras e com razão; sim, com frequência uso expressões um tanto pesadas porque necessárias, e, sim, com frequência trago questões que não fazem parte da rotina dos leitores, o que certamente dificulta absorver. É compreensível, se fosse fácil o blog não teria razão de existir. Não escrevo com fins doutrinários ou de persuasão, mas no intuito de reflexão, debate e aprendizado mútuo. Não é o que você espera de mim? Para isso, em meio a tanta complexidade, procuro ser o mais claro possível porque, afinal, aku ora nganggo basa java  eu não falo javanês!

Um comentário:

  1. Que pancada!

    Reflexão rápida: é a demanda que determina a oferta, não? Francamente e em querer entrar na moralidade dos respectivos fornecedores, acho um erro culpar apenas um traficante de drogas ou charlatão pelos serviços que presta; penso que os mesmos não resistem ao apelo da venda fácil de suas mercadorias, sendo portanto, meros reféns dos consumidores.

    Abraço.

    Abraço.

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