Obras

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sexta-feira, 21 de fevereiro de 2020


FÁBRICA DE IGNORÂNCIA

A ignorância não tem culpa. Será que não? Essa frase da semana passada me fez pensar muito a respeito. Até que ponto realmente ela não tem culpa e não tem culpa de quê? Em primeiro lugar, quero deixar claro que “ignorância” a que me refiro - e também a frase - equivale a desconhecimento, falta de informação, de saber, inocência, e não no sentido de pejorativo de burrice, estupidez, cretinice. Todos nós temos conhecimento em muitas coisas, mas somos totalmente ignorantes em muito mais. Como diria Karl Popper, O conhecimento sobre nossa ignorância é a principal fonte da nossa ignorância”. Sei que o título do post é intrigante, como assim, “ignorância fabricada”? Vem comigo.


Saiba que há uma espécie de ignorância nefasta, venenosa, covarde e com toda a culpa no cartório. Embora sempre praticada, somente nos últimos anos tem seio estudada com mais interesse e com a devida importância. Trata-se da “ignorância estratégica”, atitude que assumiu protagonismo em tempos de fake news, neo ou pós-verdade, o que, de certa forma, não é nenhuma novidade, só ganharam mais visibilidade. O foco inicial dos estudiosos, em especial da socióloga canadense Linsey McGoey, que cunhou a expressão, foi a Saúde no Reino Undo, mas se estendeu rapidamente para economia, educação, direito, política, ciência, mídia, tecnologia, em nível global. A “ignorância estratégica” é viral e está fora de controle. Nem preciso entrar na discussão sobre a manipulação da informação - ou da ignorância - via redes sociais e mídia, temas abordados no estudo, de tão óbvio, nem da idiotizante cultura de massa e do não menos deletério senso comum, que solapam a razão. Se ignorância agrupa, inteligência isola. Se saber não tem preço, ignorar custa caro.

Em linhas gerais, a ignorância estratégica consiste na habilidade em explorar a falta de conhecimento público em busca de poder, mas vai muito além disso. Em sua recém-lançada obra, McGoey transpõe as fronteiras da indústria farmacêutica, sua primeira investida, e revela como a ignorância é arquitetada e manipulada por diferentes grupos para os mais diversos fins - políticos, jurídicos, midiáticos e nas mais influentes teorias econômicas. No coração da prática, a mentiraA mentira pertence a qualquer homem, a verdade, essa, a um só. Enquanto a mentira paira ruidosa sobre nossas cabeças ao alcance dos olhos, a verdade repousa em silêncio sob nossos pés à espera de ser encontrada pela nossa consciência. Se não for por ela, o tempo se encarrega de trazê-la à luz. Diz a autora:
Há hierarquias de ignorância e, em geral, a ignorância de pessoas simples é a mais criticada, mas eu argumento que essa hierarquia precisa ser invertida, porque é justamente entre as pessoas com maior poder que a ignorância se torna mais valiosa e com os efeitos políticos mais devastadores. Apesar de a ignorância ser universal, diferentes grupos sociais a usam de  maneiras específicas, e as pessoas com mais poder são as que mais lucram com a exploração deliberada de incertezas.
O Dicionário Oxford, em 2016, definiu a pós-verdade como “Tudo o que se relaciona ou denota circunstâncias nas quais fatos objetivos têm menos influência em moldar a opinião pública do que apelos à emoção e a crenças pessoais.” Agora leia com atenção o que diz McGoey: Se você olhar para a história moderna, verá vários exemplos de pessoas tentando gerar fatos alternativos ou dizendo que a realidade de alguém não é verdade para ganhar vantagens políticas. Não há nada novo na tentativa de manipular as fronteiras entre o que é real e o que não é”. Claro, o sublinhado é meu, você sabe bem do que e de quem estou falando.

Os estudos indicam ainda que há três tipos de homo ignorans: o ignorante inocente, pueril, singelo, sem instrução, que não tem ideia do que desconhece; o que sabe de que não sabe tudo, que pode ser entendido, em algum momento, como ignorância tática, ou voluntária, conveniente conforme as circunstâncias: “Não sei de nada”. E o terceiro tipo, que fabrica incertezas e dúvidas ou abusa da falta de conhecimento público intencionalmente. É aqui que mora o perigo, é aqui que o estudo - Agnotologia - ajusta sua mira, na produção de ignorância. Agnotologia é um neologismo criado em 2005 por Robert Proctor, historiador da Stanford University, aplicado a personagens que escondem ou desvirtuam informações em benefício próprio, e que estão em qualquer degrau da escala social e em qualquer função - governantes, juízes, empresários, autoridades, profissionais liberais, qualquer um. Pela gravidade dos danos, tal conduta é vista como criminosa, típica de canalhas e velhacos. Quero lembrar que, em Malebouge, a concepção infernal de Dante é democraticamente impiedosa, onde são despejados os mentirosos, os prevaricadores, os falsários: No décimo e último fosso, o mais profundo, sombrio, pestilento e fétido, para que apodreçam dementes cobertos de flagelos e dores lancinantes. Atenção novamente ao que diz a socióloga:
Muitas vezes as pessoas reclamam da falta de conhecimento sobre certos fatos, mas essa ideia de déficit cognitivo é limitada porque, geralmente, coloca a culpa da ignorância no público em geral, ou em um sistema de educação ou na falta de investimento nela, mas ainda não se estuda com profundidade a ideia de que, mesmo que você tenha acesso a toda informação, ainda assim estará social e institucionalmente numa posição de modo que não seja vantajoso buscar conhecimento.
A doutora lidera uma equipe de acadêmicos que estuda a temática nas ciências sociais, econômicas e criminais no que foi denominado Estudos da Ignorância. Em 2015 foi publicado o primeiro manual internacional sobre a matéria. De acordo com a equipe, a busca pelo conhecimento foi teorizada como a essência do ser humano, mas, apesar de parecer óbvio que as pessoas queiram ignorar fatos, a ignorância nunca foi tão estudada quanto a geração de conhecimento. A ignorância não tem medida e isso explica em parte seu poder. É terra de ninguém, todos falam o que querem e escutam só o que querem. E isso é um desafio enorme para os cientistas sociais porque eles fazem mapeamentos, anotações, estabelecem parâmetros para entender o tamanho do fenômeno, e a ignorância, por sua natureza, é o não saber. 

A ignorância planejada coloca a todos no patamar zero de racionalidade, utilizando-se da força da mídia em todas as plataformas com alcance planetário imediato, agrupando as pessoas por contágio em nichos próprios. A violência da linguagem é tão maléfica quanto a física, se não pior, porque aquela conduz a esta. Toda ignorância, em qualquer nível, coloca a fantasia no lugar da realidade. A ignorância, planejada ou não, cerceia, inibe ou mesmo desestimula a busca pelo conhecimento, gera crenças, preconceitos, superstições, paranoias e distorções e, em certo sentido, embrutece o ser e o aproxima da animalidade - seja como cordeiro ou como leão. Percebeu como este raciocínio dialoga com a réplica feita no post O ser em desconstrução? E também estabelece ligação com o texto anterior - Ferida que não fecha, sangra?

Paradoxalmente, a ignorância agrupa mas não une - o céu é o mesmo mas os horizontes não. Se é que há um, nessas circunstâncias. Em última análise, e essa é uma verdade perversa, devo dizer, o ignorante doutrinado não é, ele apenas existe, incondicional e melancolicamente, como o cordeiro ou o leão. Não havendo percepção da realidade, não há nada, só espaço e tempo, e nem eles são percebidos como tais. Pouca diferença há entre um ignoto doutrinado e seu papagaio de estimação, ambos apenas repetem o que lhes é ensinado. Enfim, cada um faz da sua vida o que bem entender e do jeito que lhe convém, afinal, ignorância não é apenas uma questão de informação, mas, antes, de formação.

Para terminar, trago de volta perguntas feitas semanas atrás: A quem interessa disseminar ignorância se ela ia é autodestruição de um povo? A quem interessa ocultar a verdade e produzir mentiras? A quem interessa o caos, o colapso, o abismo? O antídoto está na informação, no saber, no discernimento, questionamento, reflexão e percepção do mundo real. Perdoe a imodéstia, mas tudo isso você tem aqui mesmo o tempo todo. Uma última palavra, em tom de sugestão: Que tal começar a investir no conhecimento planejado? As futuras gerações agradecem.

Agnotologia: Estudo das políticas de produção de ignorância.
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Linsey McGoey, The Unknowers: How Strategic Ignorance Rules the world. Zed Books, 2019.

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