Obras

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sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

VIAGEM QUÂNTICA

Como você sabe, não posso condescender nem calar ante pilantras que abusam da fé alheia com suas atividades espúrias. Todo charlatão tem duas caras, e a que se oculta por trás de uma máscara de falsa polidez e erudição acaba sendo revelada, mais cedo ou mais tarde, seja um Nobel, PhD, celebridade ou qualquer um de reputação duvidosa. São os mercadores de ilusão. Falar asneira qualquer um fala, passar a limpo, poucos. Texto caudaloso hoje.

Um dos recursos que o velhaco utiliza é o falso saber, mas a estratégia mais adotada é saber o que o outro desconhece - o saber “oculto ” -, usando uma oratória fluente, terminologia científica, argumento de autoridade e o clássico “não precisa acreditar em mim, pesquise e conclua por si mesmo”. Costuma funcionar, até porque a facilidade de acesso ao conhecimento faz com que se propague um volume muito grande de dados falsos cheios de termos científicos sem o necessário filtro. Tem, também, o infalível “cientificamente comprovado”, que induz a se aceitar acriticamente conceitos errados. Desse modo, está “cientificamente comprovado” que a Terra é plana, que discos voadores são reais, que a física quântica “comprova” a existência de deus, da vida após a morte, da alma, de espíritos e da expansão da consciência ao nível cósmico. Uau! 

O comércio espiritual busca, através da apropriação dos saberes da ciência, legitimar a eficácia e dar credibilidade ao “produto”: de colchões bioquânticos que garantem curar problemas de coluna a “terapias vibracionais” no combate ao câncer, sem quaisquer evidências cientificamente reconhecidas. As farsas místicas crescem no mundo causando estragos irreparáveis ao subverter a verdadeira ciência. A física quântica não dá nenhum respaldo à mística e à metafísica, contrariando os esotéricos, posto que se restringe unicamente ao estudo de moléculas, átomos e partículas subatômicas. Qualquer coisa que se diga ou faça fora disso é ilação, fantasia ou charlatanice.

O desconhecimento sobre física (ou mecânica) quântica por parte do público leigo colabora para a difusão de falsas ideias. Os conceitos da física quântica se aplicam exclusivamente ao microcosmo atômico e não ao macrocosmo em que vivemos, embora estejam presentes em algumas tecnologias, como ressonância magnética, GPS, radioterapia e, a caminho, computação.

Tudo o que se diz sobre as implicações religiosas das ideias quânticas se ancora no discurso do físico e guru indiano Amit Goswami, que propõe uma conexão falaciosa entre ciência e espiritualidade - um abismo intransponível. Esse é um filão habilmente explorado por cientistas, filósofos, sacerdotes, místicos e picaretas da auto-ajuda, que surfam na onda new age quântica no intuito de dar cunho científico às suas crenças e, no mais das vezes, vitalizar a conta bancária gerindo uma rede privada de membros pagantes (câmara de eco) nos moldes de uma seita pseudo científico-espiritualista onde tudo se confunde: espíritos, alimentação natural, ufologia, espiritualidade, alma, outras dimensões, terapias alternativas, paranormalidade, mestres, mentalização, energias cósmicas e, claro, física quântica.

Em seu livro Quantum Gods, o físico americano Victor Stenger põe abaixo o castelo da mistificação desenfreada conduzida por personalidades incensadas como Fritjof Capra, David Bohm, Deepak Chopra, Maharishi Yogi e o próprio Goswami, entre outros. Suas obras abarrotam as prateleiras do misticismo espiritual, religião e auto-ajuda, mas execradas no círculo científico. Dados compilados na Web Science mostram que, de 1986 a 2016, Amit publicou somente 9 artigos, com 46 citações, a maioria dele mesmo ou de seus colaboradores. Ele e companhia aderiram oportunística e levianamente à corrente de pensamento esotérica dos anos 70 e descambaram para a mistificação científica e a espiritualidade trapaceira. “Viajam” pelo mundo participando de congressos de felicidade e prosperidade”, dividindo espaço com impostores como o conhecido falso guru brasileiro Sri Prem Baba². Goswami e sua turma fizeram escola. O astrofísico Marcelo Gleiser, por exemplo, admite ter se interessado pela física influenciado por Capra. Hoje, militantes misticóides fanáticos usam os canais digitais como coaches quânticos vendendo sua vigarice explícita, onde a impostura intelectual é flagrante.


Nenhuma seita se reconhece como tal, pois isso seria agir contra o próprio patrimônio, obcecada que é pelo poder de manipular e controlar seu cardume ao estabelecer as suas verdades. Seita, do latim secta - partido, causa, grupo, fileira, tem relação com os verbos sequi - seguir, ir atrás, e secare - cortar, recortar, separar. É o que uma seita faz, recortar uma doutrina e arrebanhar adeptos com perfil identitário homogêneo e afinidade ideológica. Toda seita é um monumento à estupidez onde o arauto dos novos paradigmas, o“novo sacerdote” midiático se caracteriza pelo comportamento narcísico deprimente de auto-promoção e culto à imagem, desequilíbrio psíquico, despreparo  cultural, incapacidade crítica, delinquência espiritual, crise de sentido, anacronismo, fuga da realidade, falta de ética, respeito, responsabilidade e vergonha na cara. Para o sociólogo Leon Festinger, toda seita revela falha de raciocínio lógico, inversão de valores, resistência à contestação e busca de afirmação, que ele chamou de dissonância cognitiva. Umberto Eco vê a new age, berço das seitas como
Uma religiosidade do inconsciente, de turbilhão da ausência do centro, da diferença, da alteridade absoluta ou do abismo, que tem atravessado o pensamento moderno como contrafiguras subterrâneas das inseguranças produzidas pelas ideologias obscurantistas do progresso e do jogo cíclico das crises econômicas (citado por Cueto, p. 11).
O físico Thomas Kuhn define paradigmas como “as realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma ciência” (p. 19). Essa definição tornou-se uma espécie de guia para rotular quaisquer novas proposições da ciência como novos paradigmas. Por exemplo, opõe-se à teoria evolucionista de Darwin um “novo paradigma”, a teoria do design inteligente, versão mais elaborada do criacionismo. Os tais novos paradigmas caducaram há muito tempo. Pior  é quando um paradigma se torna um paradogma claustrofóbico asfixiante. 

Quando um novo paradigma sequer é considerado pela comunidade científica, seu autor se coloca como vítima do sistema e alvo de complô, repudia o descrédito das instituições e acusa os colegas de inveja. Muitos dos nomes citados se consideram “ativistas quânticos”, conciliadores, construtores de pontes entre ciência e religião. A espiritualidade, a transcendência por si não se justificam e forçam a barra para que conceitos científicos “oficializem” seus argumentos. O espiritismo, por exemplo, alega possuir “provas científicas” da presença de entes “do além” no mundo físico, mas não as tem e nem poderia. Outras linhas defendem a comprovação irrefutável de telepatia, premonição, vidência, ou da ação dos astros e cartas na vida do sujeito. Mais uma falácia travestida de ciência. É prudente duvidar da honestidade e do caráter daqueles que prometem soluções mágicas para problemas complexos, ainda mais quando ostentam títulos honrosos. Para isso existe a Patafísica, a ciência das soluções imaginárias. O colegiado científico abomina práticas e doutrinas consideradas exóticas e contrárias aos princípios éticos. Quem não abomina?

Qualquer livro, artigo ou meio que trate de misticismo, paranormalidade, expansão da consciência e terapias espirituais, que tenham como base argumentativa científica a física quântica, deve ser visto com desconfiança e ceticismo. Um exemplo é a obra do indiano Deepak Chopra, Corpo sem Idade, Mente sem Fronteiras: A alternativa quântica para o envelhecimento, onde afirma que doença e envelhecimento são uma ilusão, porque a mecânica quântica mostrou que “o o mundo físico é uma criação do observador”. Nessa senda, Goswami, em O Universo Autoconsciente: Como a consciência cria o mundo material, defende que os fenômenos paranormais, como a percepção extra-sensorial, são apoiados pela mecânica quântica¹:
.. os fenômenos psíquicos, como a visão distante e as experiências extracorpóreas, são exemplos da operação não-local da consciência (...) A mecânica quântica sustenta essa teoria, fornecendo suporte crucial para o caso da não-localidade da consciência (p. 335).
Cabe esclarecer que o fundamento das afirmações sobre o modelo quântico é atribuído à chamada dualidade de onda-partícula da física quântica, a saber: no nível quântico, os objetos físicos parecem possuir propriedades semelhantes a partículas e a ondas, que dependem de uma dada propriedade de uma ou de outra. Ao medirmos o comprimento da onda, ela age como partícula. Ao medirmos a velocidade ou a posição da partícula, ela age como onda. Após um século de estudos, a aplicação metafísica do modelo quântico ainda é extremamente controversa. A Interpretação de Copenhague (1930) promulgada por Niels Bohr é consensualmente aceita como convenção, e não há qualquer nota sobre consciência. Entretanto, segundo Stenger, a redação inadequada dos termos desse protocolo permitiu inferências logicamente falaciosas de que o elétron não existe como partícula real e localizada até a realização de um ato consciente de medição.   

Em 1952, David Bohm propôs uma teoria sub-quântica que previa partículas seguindo caminhos definidos com efeitos quânticos resultantes de forças que se encontram abaixo dos atuais níveis de observação, contudo, nunca foram encontradas evidências dessas forças sub-quânticas. O agente d“viagens” quânticas tem roteiro variado: cura quântica, consciência quântica, exercícios quânticos, mentalização quântica, energia quântica, e na alimentação quântica o item mais consumido é maionese. Isso mostra porque o ser humano continua preferindo o mundo da magia, do 'sagrado', do mistério, da mística e da fantasia, ao invés de mirar os olhos para o mundo da razão que a ciência não cansa de prover. 

¹ Time Higher Education Suplement5/01/2001.
² Congresso Internacional: Felicidade, Prosperidade, Abundância e Física Quântica. Curitiba, nov/2016.
______________
Victor J. Stenger, Quantum Gos. Prometheus Books. 1997.
Thomas Kuhn, A Estrutura das Revoluções Científicas, Perspectiva, 1962.
Amit Goswami, O Universo Autoconsciente, Aleph, 2015.
Allan Sokal, Jean Bricmont, Imposturas Intelectuais, Record, 1999
José Magnani, Mystica Urbe, Studio Nobel, 1999.
Juuan Cueto, Mitologias de la Modernidad en el fin de siglo, Salvat, 1982.
Jean-François Mayer, Nocas Seitas, Um Novo Exame. Loyola, 1989.

2 comentários:

  1. Que baita trombada, seu Reis! Mais um texto delicioso, recheado de razão, entupido de fundamento e lucidamente composto.

    Esqueceu-se de mencionar o "automóvel quântico", VW Santana Quantum...

    Abraço.

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  2. Ótimo texto!

    Por anos fui um opositor ferrenho do Goswami e dos aproveitadores quânticos, a ponto de perder a polidez. Mas hoje vi que não adianta bater de frente com seus seguidores, pois fanáticos muito raramente querem perder a ilusão que lhes tapa buracos psicológicos.

    A maravilha de contrapor a ciência a essa corja está em algo simples, a la James Randi: experimentos. Não há nenhum que possa ser feito com esse monte de garatujas que resulte em qualquer coisa concreta.

    Falam em uma nova mentalidade que superaria o dinheiro, mas sempre cobram valores altos para encher os ouvidos dos outros de estrume.

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