Obras

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sexta-feira, 14 de fevereiro de 2020

FERIDA QUE NÃO FECHA, SANGRA

O assunto “aparição de Fátima” já foi discutido em A gênese das MarianofaniasA história nos bastidores é outra e O real, o simbólico e o imaginário e, indiretamente, em dezenas de posts. Seria desnecessário, portanto, retomar o debate não fosse o empenho de pesquisadores ainda encantados pelo fenômeno das “aparições marianas”, que traz outros olhares sobre a questão. Estou falando do livro Fátima: Mais além da fé (https://bookcover.pt/product/3849/), uma antologia multidisciplinar com ensaios de autores representativos no meio, sob a coordenação dos historiadores Fenando Fernandes, Joaquim Fernandes e Raul Berenguel.

Pouco mais de um século após os acontecimentos, vem a público uma nova abordagem acadêmica internacional propondo explorar novas dimensões culturais. históricas e científicas. Nas palavras de Joaquim Fernandes, a obra traduz um esforço inédito e transconfessional de analisar com a possível objetividade e de forma multidisciplinar um largo espectro de fenômenos ocorridos no decurso das 'aparições' marianas de Fátima/Cova da Iria em 1917.” E prossegue: Os devotos da religiosidade popular têm todo o direito de manifestar as suas crenças e expectativas que recuperam, afinal, um patrimônio imaterial e um fundo cultural ancestral da nossa matriz genética enquanto comunidade e mantêm vivas e persistentes as expressões de um pensamento mágico e da sua estrutura mítica profunda.

Pensamento mágico e estrutura mítica profundaOs fenômenos presenciados na ocasião alimentaram um dos mais complexos mitos ancestrais no seio da religiosidade popular católica. A obra, nesse sentido, trata de mostrar que a questão das visões ou aparições extrapolaram meras leituras leigas entre a piedade singela, a fé incondicional e a teologia apologética. Neste particular, Mariz afirma que 
As aparições têm fascinado fieis, a mídia e os pesquisadores pelo caráter apocalíptico de muitas das mensagens anunciadas pela Virgem Maria. Na maior parte dos relatos de aparições, há precisões de castigos e catástrofes que podiam ser identificadas como características de 'um fim de era'. Catástrofe, Besta Fera e Maria desempenham um papel importante nas previsões para o fim dos tempos anunciadas desde o início do Cristianismo.
De acordo com o pesquisador Chiron, a investigação canônica mantém os princípios propostos por Bento XIV na avaliação de uma aparição. Resumidamente, são eles: a) a personalidade do vidente; b) o conteúdo da aparição; c) sua natureza e forma, e d) a finalidade da aparição. Os estudiosos da Igreja consideram também o desenrolar dos eventos sob as óticas histórica, psicológica e teológica. Um desses especialistas, René Lauretin, destaca mais quatro aspectos a serem examinados: 1) A pertinência do fenômeno em relação à doutrina católica; 2) O comportamento do vidente (saúde mental, conduta moral, etc); 3) Similaridade com ocorrências anteriores reconhecidas; 4) O resultado da aparição: conversões, mobilização popular, reavivamento da fé, produção de obras e vocações. Ainda segundo Mariz,
Nossa Senhora aparece para falar dos pecados da Humanidade, cobrar a conversão e volta aos valores tradicionais. Penitência, sacrifício, oração, preocupação com a salvação eterna marcam todas aparições. Desta forma, o discurso das aparições se afasta muito do Evangelho da Prosperidade, onde a busca do sagrado traz sempre melhorias concretas para essa vida. (...) As mensagens nesses relatos como em quase todos os outros dizem mais respeito ao outro mundo, o além morte, a salvação eterna. Fala-se, por exemplo, em penitências, sacrifícios, orações pedidas pela Virgem. No relato do terceiro segredo de Fátima, a figura de um anjo com uma espada em punho gritando “Penitência, Penitência” é muito expressiva.


Por sua vez, Zimdars-Swartz afirma que “As aparições públicas nas quais um número de pessoas se reúne para observar um vidente em êxtase, parece ser, ao menos no contexto da história do cristianismo, um fenômeno peculiar dos dois últimos séculos”. Enquanto Fátima ficar circunscrita a uma única instância discursiva - a religiosa -, sua idolatria seguirá perene, intocada e imaculada, no estrito sentido da palavra. Porém, no momento em que a Ciência atinge o coração do problema em busca de respostas, o fenômeno se desestabiliza. Acrescento, para refletir, que fenômeno, fantasma, fantástico e fantasia se originam do grego phainomenon, phainein, phaintastikósphainesthain, do radical phos - resplandecer, aparecer, brilhar, iluminar, ser visto, mostrar-se, e também irreal, imaginado, ilusório.

No conjunto, Neurociências, Psicanálise, Cultura, História, ciências sociais, Mitologia, Filosofia e Semiótica, entre outras, contribuem para a compreensão do mecanismo gerador das aparições, deslocando o caráter “sagrado”, “sobrenatural” e “maravilhoso” ao plano do entressonho. Isso muda a maneira de olhar essa hierofania? Para o grande público, para a gigantesca massa de fieis, para a cultura popular e, principalmente para a Igreja, não, nada muda. Fátima transformou-se em um patrimônio religioso global, símbolo de uma fé transnacional.




Fico grato aos autores pela dedicação em oferecer novas perspectivas, mas a Virgem de Fátima está muito bem protegida numa redoma inviolável aos agudos espinhos da Scientia, que sangram as feridas abertas nos espíritos mais suscetíveis. A ignorância pode não ter culpa, mas, com todo respeito, pergunto: Se a Senhora aparecer novamente numa savana africana, num vale indiano ou num arrozal chinês, e o Sol bailar nos céus, vamos atravessar mais um século tentando explicar o fenômeno? Até quando continuaremos acreditando que Santas surgem do nada e fazer relações com anjos e alienígenas? Não estaríamos dando demasiada atenção ao supra-humano e relegando o humano a um papel menor? O conhecimento atual ainda não é suficiente para por termo à discussão e a especulações descabidas?

Sabemos que o aspecto da religiosidade é imbatível neste caso, os muitos interesses em jogo e d poder carismático do evento, mas ainda assim, definitivamente, entendo que já passou muito da hora ouvir com maturidade, objetividade e isentos de paixões o que as vozes do saber e da razão têm a nos dizer. Surdez e cegueira não podem negar a realidade, e a ignorância pode não ter culpa, mas, a meu juízo, pode ter sim e muita. Vamos conversar sobre isso na próxima semana.


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Fernando Fernandes et al. Fátima: Mais Além da Fé. Book Cover, Porto, 2019.
Cecília L. Mariz. Aparições da Virgem Maria e o Fim do Milênio.  Ciencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, ano 4 nº 4, pp. 35-53, 2002, Porto Alegre.
Yves Chiron, Enquête sur les apparitions de la Vierge. Perrin/Mame. Paris, 1995.
René Lauretin, Multiplication des apparitions de la Vierge aujourd'hui. Est-ce ele? Que veut-elle dire? Favard, Paris, 1988.
Sandra Zimdars-Swartz. Encountering Mary; from La Salette to Medjugorje. New York: Avon Books. 1992.

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