Obras

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sexta-feira, 20 de março de 2020

PRECISAMOS CONVERSAR SOBRE O GATO

Era uma vez, há muito, muito tempo atrás, num pequeno e distante país além dos mares e das altas montanhas, um velho vilarejo com seus pacatos habitantes. Tudo ia bem até que, de repente, uma doença misteriosa se disseminou pelo povoado. Um dia, 100 homens morreram; no dia seguinte. 200 mulheres, depois 300 crianças e assim, dia após dia, as pessoas foram morrendo. Alarmada, a população pediu ao médico da aldeia que interviesse rapidamente para conter as mortes antes que ele próprio fosse vítima. E assim ele fez.

Examinando minuciosamente os pacientes, ele deduziu que a causa era de natureza animal. Os bichos estão causando a mortandade, informou o médico. Os ratos, gritaram todos, os ratos estão nos matando. Mas o médico lembrou que havia gatos também, aliás, só havia gatos e ratos na vila. Não, os gatos não, são os ratos, esses pequenos demônios, ele são a causa das mortes, disseram todos. E saíram céleres à caça dos ratos.

Esperem, disse o médico, não temos certeza, precisamos investigar com mais cuidado, precisamos ter certeza. Ressabiados e temerosos, mas respeitando a opinião do doutor, os homens concordaram, e pediram pressa nos exames. E assim ele fez. Pegou um gato e um rato e os levou ao laboratório. Colocou-os sobre a mesa e observou. Ambos tinham quatro patas, duas orelhas, dois olhos, focinho, boca, nariz, rabo e bigodes. Diferentes na forma, mas iguais nas partes. Ambos tinham coração, pulmões, intestinos, rins, estômago, fígado e sangue. Iguais no conteúdo, diferentes na forma. Gatos e ratos tinham ossos, língua, músculos, nervos, cartilagens, garras, dentes e pelos. Eram mesmo iguais nas entranhas mas diferentes na forma. Levou tudo ao microscópio, passou dias e noites noites e dias examinando, examinando de novo e examinando mais uma vez. E chegou a uma conclusão.

Senhores, disse o clínico, todos o ouviram em silêncio. Examinei, examinei e examinei os homens, as mulheres, as crianças e os animais, e conclui que um deles é mesmo a causa das mortes. Oh, exclamaram todos, os ratos, os ratos, matemos todos, acabemos com essa praga de uma vez, precisamos nos livrar deles agora mesmo, bradaram, e saíram esbaforidos às ruas brandindo paus e pedras a exterminar os roedores.

Esperem! gritou novamente o esculápio. Não são os ratos, são os gatos, os gatos! Há um vírus no pelo dos gatos que está dizimando a população. Os ratos estão limpos. Oh! espantaram-se todos, incrédulos. Não, o senhor está enganado, são os ratos, os ratos, nós sabíamos desde o começo, são eles, esses diabinhos, a peste que está matando todos nós. Os gatos são divinos, os ratos são coisa do chifrudo. Não, retrucou o facultativo novamente, os ratos não, os gatos, são os gatos que estão infectados. Examinei três vezes e por três vezes não me enganei, a doença está nos gatos, nos bichanos!

Atônitos, os homens pararam. Fez-se um longo silêncio. Entreolharam-se, calados até que, na multidão. alguém gritou: O médico, o médico fez um pacto com o demônio, ele quer matar os gatos e salvar os ratos, ele está possuído pelo demo! Vamos matar o médico e depois os ratos. E assim fizeram. Mataram o pobre homem e o jogaram no rio, queimaram sua casa, destruíram seu laboratório, instrumentos e anotações. Em seguida, mataram todos os ratos e voltaram felizes e aliviados para suas casas.

Dias depois, o último homem morreu abraçado ao seu gato.

Um comentário:

  1. Que baita escovada, seu Reis! Imagino o motivo e o endereçamento desse post, tão contextual...
    Deveras, a maioria de nós prefere morrer abraçada com o engano.
    Saudações.

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