Obras

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quarta-feira, 25 de março de 2020

TEMPESTADE NO DESERTO DO REAL


Mudando um pouco de assunto, hoje quero falar desse momento difícil que o mundo atravessa. Estamos confinados no espaço e congelados no tempo, condenados a inércia compulsória. É como estar só e desarmado numa selva escura, assustadoramente silenciosa, onde o menor movimento, um pisar em falso, esbarrar em folhagens ou um suspiro mais fundo aguça o apetite de um inimigo invisível à espreita em busca de alimento.

Sim, a humanidade está sendo colocada à prova diante de um fato novo, pelo menos em sua dimensão planetária, e ainda que alguns especialistas tivessem previsto que algo dessa envergadura pudesse acontecer, ela não se preparou, e agora paga o preço pela displicência. E negligência. Preço esse, diga-se, ainda impossível de estimar, seja em número de vítimas ou em cifrões. É uma corrida contra o tempo, e ele nunca andou tão lentamente para muitos nem tão rapidamente para outros tantos.

Times Square deserta e silenciosa, funerais em série. Canais de Veneza transparentes com peixes e cisnes em vez de gôndolas em águas escuras, cemitérios sem espaço. Praça de São Pedro nem infiéis recebe, desemprego rondando na praça. Torre Eiffel posa altiva para turista nenhum, escassez de alimentos no horizonte; pavões reais passeiam pelas ruas da Espanha, idosos no cinturão de um doloroso isolamento. Céus só para andorinhas e mares só para golfinhos, famílias não enterram seus mortos. Estranho mundo estranho.
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Aeroportos vazios e UTIs lotadas, lojas fechadas e janelas abertas. Ginásio de patinação no gelo virou arena frigorífica para cadáveres. Estádios viraram enfermarias, gramados viraram leitos, o grito não é de gol, é de dor, porque a “bola” do jogo tem outro destino. Mórbido contraste. Pandemia é pandemônio – pan demonium, todos os demônios num só lugar, como no poema de Milton¹. O inverno chegou mais cedo. Quem “lava as mãos”? O deserto do real não é uma ficção.



Se o coletivo é testado em meio à paralisia social e econômica, o particular continua exatamente o mesmo. Nas redes, o bom humor corre solto com muita criatividade disfarçando o medo do autor enquanto não é atingido; informações, vídeos e mensagens falsas confundem e constrangem; aproveitadores disparam o preço de produtos essenciais, a solidariedade, com raras exceções, ou é em causa própria ou se houver plateia, porque imagem é fundamental. De um lado, estudos científicos prenunciam cenários apocalípticos, de outro, estudos científicos projetam pouca turbulência. De dia uma troupe de governantes portando máscaras cirúrgicas quer parecer séria, à noite um solitário sincero se esforça em pintar a realidade. Vivemos um flagelo devastador ou apenas uma “gripezinha”? Estamos à beira do colapso global ou tudo não passa de manipulação criminosa? Trata-se de uma grande mentira, um embuste, uma fantasia ou histeria por ignorância, ou uma gravíssima crise de saúde pública com danos catastróficos irreparáveis para a civilização e a economia mundial? Que tal reler os posts A dimensão social da palavraO vírus da linguagem e A quem interessa?

Nesse festim caótico não poderiam faltar os místicos, picaretas, charlatães, malucos. anônimos e celebridades com suas mensagens espiritualóides dizendo que a provação é necessária para o “crescimento” do homem, nem faltam os idiotas com seu vomitório paranoico de teorias conspiratórias, nem os tolos com a insossa “tese Gaia” – a mãe-Terra revoltando-se contra seus filhos para reequilibrar a natureza. Demência em série. Os que rezam pela providência divina são os primeiros a furar a fila da vacina. Os que evocam ao transcendente a solução mágica acorrem à farmácia pela solução prática. Quando a fé não resolve vai de ciência mesmo. É fácil falar que as mãos do médico foram guiadas pelos “mestres” quando se está vivo para dizê-lo, ignorando os muitos anos de estudo e dedicação, a competência, a disciplina, a pesquisa, o arsenal técnico, a atualização científica. Não. Basta um erro e o coitado é crucificado, massacrado, um irresponsável, inconsequente. A mesma mão que aplaude na sacada apedreja na calçada. Asquerosa hipocrisia.

É muita ignorância ao mesmo tempo num tempo que deveria ser canalizado para a leitura, a cultura, a informação, o convívio, lazer e diálogo familiar que o cotidiano nem sempre permite, um tempo dedicado a reflexões e à revisão de comportamentos, conceitos e gestos que esse mesmo cotidiano agora nos impõe. O que deve ficar em quarentena é o corpo, não a mente e o isolamento é do indivíduo, não da responsabilidade. As fronteiras que se fecham são as geográficas, não as éticas. A batalha é contra um mal comum que será vencido, mas a guerra contra a estupidez, essa não tem fim, só tem perdedores.

Naturalmente, essas palavras vão escorrer com a primeira chuva. Por mais otimista que eu seja, sou antes um realista, e, de fato, infelizmente a humanidade não irá mudar por causa de uma tempestade passageira. Não mudou antes, não aprendeu com os erros do passado e, quando essa coisa toda acabar, voltará ao seu histórico normal de guerras, discórdias, desencontros, mentiras, negligência, destruição. Aqui e ali lampejos de inteligência e sabedoria, insuficientes para conter a crescente pandemia de iniquidade que assola o mundo.


¹  Pandemônio, o palácio de Satanás, ergue-se subitamente construído das profundezas: os pares infernais, em número de mil, ali se assentam no conselho em cadeiras de ouro. Paraíso Perdido, livro 1, 1667.

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