Obras

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sexta-feira, 6 de março de 2020

RETRATO SOMBRIO

Sinto-me no dever de tecer últimos comentários a respeito do post anterior, porém, indo além das fabulações espiritualóides que se vendem no mercado cobrando caro para serem ouvidas. No congresso internacional citado no post, o ingresso custou a bagatela de R$ 1.000,00 para se ouvir um bando de espertalhões falando uma asneira atrás da outra. 

Outro evento ocorrido dias atrás fez a mixórdia de sempre ao trazer temas defasados, desconexos, disparatados, sem relação entre si e com a realidade, numa cacofonia esquisita que flertou com a idiotice, apresentados por amadores numa paródia burlesca de especialistas”, de repertório intelectual acanhado e incapacitados para fazer o que fizeram. Se tivessem um mínimo de inteligência, cultura, autocrítica e decência, não o fariam. Se tivessem maturidade e respeito por si próprios, não o fariam mesmo. Ufologia, ciência e espiritualidade jamais podem dialogar porque são estranhas umas às outras, mas insistem nessa tolice com discursos insustentáveis, e tome física quântica como explicação para questões as quais não têm nenhuma competência para falar. Um desastre, e o público se encanta mesmo sem a mínima ideia do que ouviu, saindo mais confuso e mal informado do que quando entrou. Digo sempre, espetáculos medíocres têm a plateia que merecem, e a recíproca é verdadeira.

Mas há situações ainda mais preocupantes de insânia extrema, como o caso das crianças híbridas (crianças “índigo”), alegadamente originadas de cruzamento genético entre humanos e alienígenas! É inadmissível que isso seja proposto com tamanha desfaçatez por gente com título acadêmico! Tal absurdo jamais poderia sequer ser aventado de tão demencial, e quem assim o faz expõe a sua total ignorância sobre o assunto. É tão grave que os Conselhos de Ética das entidades envolvidas deveriam tomar medidas rigorosas urgentes contra uma conduta que, assim entendo, compromete seriamente o equilíbrio psíquico dessas crianças e jovens, impactando na formação da personalidade, da identidade e na construção dos laços familiar, afetivo e social. Os transtornos podem ser traumáticos e irreparáveis. Impõe-se dar um basta a essa atuação vergonhosa, imoral e irresponsável.

Tudo isso tem se agravado nos últimos anos em todo o mundo, sendo objeto de estudos na psicanálise e nas ciências sociais. Há uma crescente e desesperadora necessidade de se faze notar, para o bem ou para o mal. Desde sempre, figuras apagadas e irrelevantes dissolvidas na massa, buscam fugir do anonimato e da insignificância a qualquer custo. Nada escapa à vaidade, ao narcisismo, à oportunidade do estrelato efêmero. E junta-se, de novo, física quântica com espiritualidade, ruínas arqueológicas com visitas alienígenas no passado, espiritismo com transcomunicação extraterrestre, vida após a morte com terapia de vidas passadas e outras aberrações, chanceladas por um inexistente respaldo científico. Tais encontros se parecem com teatro pornô, onde o gozo é só dos “atores enquanto a plateia excitada paga para olhar.


Quando o sujeito não sabe qual caminho seguir, qualquer descaminho serve. Quando não encontra sentido para a vida, qualquer direção serve. Quando não tem respostas, qualquer bobagem serve. E quando reprime suas neuroses e psicoses e não sabe como resolver por falta de solidez psíquica e emocional, ele dá vazão a elas onde sabe que terá acolhimento - em ambientes onde outros como ele se encontram, sem censura ou restrições. Tais lugares passam a ser o seu refúgio de bem-estar, segurança e apoio, que o faz se sentir “importante”, identificado, com visibilidade e respeito. A ufologia em seu universo desvairado é a hospedeira ideal para legitimação e afirmação da sua psicopatia. Na área da Saúde Mental, esse comportamento apresenta traços similares ao quadro sintomático entendido como transtorno de personalidade borderline. Assunto a ser estudado.

Eu sugeriria a (re)leitura de vários posts em que abordo essas questões, e recomendo vivamente obras da maior envergadura que dissecam a cruel realidade da condição humana de ontem e de hoje. O problema extrapola o social e o psicológico, é orgânico, estruturalmente inerente ao homem, às suas carências, frustrações, angústias e desejos fundamentais. O pesadelo começa quando o sonho acaba. É o retrato sombrio de um tempo, de uma sociedade doente, de uma cultura em queda livre. Não é um cenário dos melhores, mas é o que é. Tanto é, que não hesito trazer uma amostra do pensamento contemporâneo do sociólogo Zygmunt Bauman em seu cirúrgico Cegueira Moral. Antes, uma afiada reflexão do crítico social Theodore Dalrymple: “Quem prefere falsificar a realidade com suas teorias não pode reclamar quando a realidade aparece em toda a sua brutalidade”, que faz dueto com a filosofia poética de um dos mais notáveis pensadores ingleses do século 18, Samuel Johnson: “É impossível beber água das duas margens do rio ao mesmo tempo”. Volto a  Bauman para encerrar:
A cultura não reflete nem explica a si mesma, ela é sustentada pela fé, por um sentido espontâneo de insignificância e por um desejo de existir, Por outro lado, a civilização não quer ser, mas explica perfeitamente a si mesma e ao mundo como um todo, ela é o lar da morte e de uma intelectualidade vazia e sem alma, assim como de uma autointerpretação desprovida de qualquer sentido, da qual ser e estar no mundo são algo significativo. A civilização é o último estágio de uma cultura ciclicamente existente, sua retirada silenciosa e sua morte. Como isso acontece? A fé se atrofia, a filosofia morre e as artes degeneram.As formas culturais não são mais imbuídas de nenhum sentido, tudo é frouxo, vago e governado por gestos e avaliações arbitrárias. A cultura nada mais tem a ver com a história e a existência. O único problema vivenciado pela humanidade é a vida em si - ou mais precisamente, ganhar a vida e sobreviver.

Um comentário:

  1. Matou a questão a pauladas, seu Reis!

    Agora, "um conto" era o valor do bilhete de tal congresso? Bah! Para mim, de graça seria caro...!

    Abraço.

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